Mostra exibe ‘A Vida Invísivel’, de Karim Aïnouz, aposta do Brasil no Oscar
Diretor Karim Aïnouz usa a crueza da dor para temperar melodrama sobre machismo ‘A Vida Invisível’, destaque da Mostra de Cinema de SP e candidato brasileiro ao Oscar
Pai, amante, marido, filhos. Os homens que entrame saem da vidadas irmãs Eurídice e Guida Gusmão no Rio de Janeiro dos anos 1950 são ora cruéis, ora meros paspalhões—raras vezes gentis. E ceifam uma um os sonhos das duas, condenadas a existências separadas.
Atrama de“A Vida Invisível ”, apostado Brasil para o Oscar e exibido no Theatro Municipal nesta sexta (18), em sessão de gala da Mostra de São Paulo, é velha conhecida de seu diretor, Karim Aïnouz.
O cineasta já atinha ouvido muitas vezes, da boca da mãe, da avó, das tias-avós que o criaram no Ceará.
“Eu sou meio Chico”, afirma o diretor, em referência ao filho de Guida, abandonado pelo pai no início do longa. Como ele, o diretor de “Madame Satã” e “Praia do Futuro” passou a infância sem uma figura paternal —o pai, argelino, morava na França—, em uma organização que já descreveu como um “patriarcado sem homens”.
Foi dessas mulheres oprimidas pelo machismo, condenadas por trabalhar fora e desiludidas com o amor romântico que ele se lembrou quando ganhou de presente o romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, do produtor Rodrigo Teixeira, daRTFeat ur es,háqu atroa nos.
Aïnouz tinha acabado de perdera mãe. Adaptar o livro foi então“faze rum filmes obre ela, massem fazer um filme sobre ela ”, diz.
Mas que os fãs do romance não esperem encontrar suas páginas transpostas para astelas.
Se no livro o talento de Eurídice dá e sobra para a música, a cozinha, a costura —basta o marido, Antenor, proibir uma atividade para amoça brilhar na próxima—, no filme a protagonista Carol Duarte passa dia enoite ao piano enquanto o marido infantil oide interpretado por Gregori oDu vi vier bufa em seu pescoço.
Mais doque isso, o tom faceiro e cronístico de Batalha dá lugara um melodrama ques e gu eà risca ac artilhado gênero.
Nele, a impulsiva Guida (Julia Stockler) se apaixona por um marinheiro grego, foge de casa e engravida dele. Ao retornar, é expulsa da família pelo pai, que ainda mente sobre o paradeiro de Eurídice, numa farsa ques e arras tapora no safio.
“A Martha[ Batalha] outro dia me escreveu muito preocupada porque tinha dito numa entrevista que uma das grandes diferenças entre livro e filme é que eu era muito cruel com os personagens”, ri Aïnouz.
“O livro tem uma leveza, e consegue contar ador através dela. M aspa rami mera importante que, no cinema, sentíssemos de fato ador dessas mulheres. Não no sentido de vitimizá-las, mas de ser justo com o que elas viveram.”
Essa crueza se reflete nos corpos dos personagens. Naquele Rio pré-ar condicionado, os personagens estão o tempo inteiro suados, emanchas de transpiração se espalham por suas roupas— Aïnouz diz que só gritava ação depois de todo o elenco ganhar um borrifo de água.
A carolice dos melodramas clássicos também dá lugara pele, peitos e até um pênis à mostra, como em uma das cenas mais emblemáticas do filme, que mostra a desastrada e lancinante noite de núpcias da personagem-título.
“É um filme íntimo, uterino, vaginal”, descreve Fernanda Montenegro, que faz um aponta de luxo como Eurídice hoje. “O que mais admiro nele é que nãoépanfl etário, demagógico .”
Foi justamente esse objetivo de conseguir conversar também comqu em nãoé feminista que levou o diretora adaptar o romance na direção de uma tradição que, por aqui, se popularizou nas telenovelas.
“Me interessava muito falar sobre questões políticas importantes,sobretudo a condição da mulher, porme iode um gênero que pudesse não ser ideologizado. E o melodrama é produtivo por isso”, explica Aïnouz. “Ele é físico, usa a emoção. Você não sai da sala de cinema refletindo de forma analítica.”
O gênero também acabou sendo um diferencial na corrida pela indicação a melhor filme internacional do Oscar.
Para alguns dos participantes da comissão brasileira que elegeu o filme para a vaga do país —ele disputará com outros 92 títulos um lugar entre os dez da categoria —, o forma totem mais chances de agradar à Academia do que seu maior concorrente, o faroeste distópico“Bacurau ”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Os dois conquistaram importantes prêmios no Festival de Cannes deste ano. O reconhecimento destes e de outros títulos lá fora acontece, no entanto, em um momento em que o cinema é alvo recorrente do presidente Jair Bolsonaro.
A conjunção desses fatores levou Aïnouz a encarar com uma seriedade especial a campanha pelo Oscar.
“Acho que neste ano temos a obrigação de chegar o mais perto possível dessa nomeação, para provar que o que foi feito até agora está dando certo ”, diz.
Enquanto isso, trabalha no próximo projeto, um documentário sobre opai em que investigasua conexão perdi dacoma Argélia e retrata os movimentos juvenis que hoje tomam o país.
“Com essa onda conservadora no Brasil, fui procurar um lugar para respirar, que é essa história de um dos primeiros países do mundo ase libertarem do colonialismo.”
Em seu décimo longa, Aïnouz está se voltando para si mesmo? “Estou atrás de aventuras”, responde.
Cultura se fortalece ‘debaixo do pau’, diz Fernanda Montenegro
O escolhido pelo Brasil a tentar uma vaga no Oscar repete um elemento central que havia em “Central do Brasil”, de Walter Salles, o último título nacional a chegar no páreo final, em 1999: Fernanda Montenegro.
Aos 90 anos recém-completados (ela fez aniversário no último dia 16), a atriz faz troça da idade. “Parece que em mais quatro ou cinco anos, faço cem”, brinca.
Continua, no entanto, na labuta, e depois de lançar uma autobiografia pela Companhia das Letras, ainda aparecerá em longas de Cláudio Assis e do genro, Andrucha Waddington.
Não é só no campo das artes que Fernanda segue ativa. Há duas semanas, ela arrebatou o Theatro Municipal paulista num evento do Festival Mário de Andrade ao dizer que “sistema nenhum vai nos calar”, em resposta a sucessivos episódios de censura recentes.
A atriz diz que não é de hoje que a cultura se fortalece quando está “debaixo do pau”. “Apesar do camburão, da cavalaria, do gás lacrimogêneo, veja o que nós conseguimos”, diz.
Mas vê um componente diferente na censura praticada hoje em comparação com aquela que viveu na ditadura.
“Na época dos militares, tínhamos a ideologia, apolítica. Agora, ainda temos amoral, vista por um lado esquemático,fechado, medieval. E aí acho que é grave. Se não lutarmos, acabaremos nas fogueiras da Inquisição Espanhola.”
No Municipal, Fernanda passou ao largo da comoção que havia protagonizado dias antes, quando fora atacada nas redes sociais pelo diretor teatral da Funarte, Roberto Alvim.
Bolsonarista, ele tinha criticado um ensaio da revista Quatro Cinco Um em que a atriz posava de bruxa diante de uma fogueira de livros, chamando-ade“sórdida” e“mentirosa ”.
Fernanda justifica que, se não respondeu as ofensas, foi porque nãoéo mesmo tipo de pessoa que Alvim, “um ser humano que agride”.
Um pouco mais velha que a personagem que interpreta em “A Vida Invisível”, a atriz diz que, apesar de seus pais a princípio não aceitarem sua profissão, sua trajetória foi diferente da de Eurídice. Mas que o longa não deixa de ser “uma visão e uma denúncia de como já avançamos hoje”. “Há uma outra luz em cima do ser mulher, esposa, mãe, filha.”
Dizendo-se grande admiradora do diretor Karim Aïnouz, conta que também adorou “Bacurau”, rival na primeira etapa da indicação ao Oscar. “Graças a Deus produzimos essa multiplicidade. Tudo serve à sobrevivência de uma arte no Brasil sempre tão sofrida.”
A Vida Invisível Brasil, 2019. Direção: Karim Aïnouz. Com: Carol Duarte, Julia Stockler, Fernanda Montenegro, Gregório Duvivier. Exibições nesta sexta (18), no Theatro Municipal (pça. Ramos De Azevedo, s/n), às 20h30, e no Noitão do Petra Belas Artes (r. da Consolação, 2423) na próxima sexta (25), às 23h30. Estreia em 31/10.
Não é exatamente fácil ser cinéfilo de realidade virtual. Passar mais de duas horas numa sala de cinema vendo um filme em tela plana é trivial. O mesmo tempo usando óculos de VR, porém, deixa qualquer um zonzo.
Mas mesmo se o objetivo for ficar grogue, o espectador enfrenta outro entrave: o acesso a esses títulos. Essa nova linguagem, porém, começa a frequentar os festivais de cinema.
A Mostra de Cinema de São Paulo traz neste ano 19 curtas em realidade virtual, que serão exibidos gratuitamente no Cinesesc até 30 de outubro. Deles, cinco rodarão em itinerâncias pelos CEUs.
O destaque é para “A Linha”, de Ricardo Laganaro, premiado em setembro no Festival de Veneza. A animação, originalmente em inglês, é narrada por Rodrigo Santoro e conta uma história de amor que se passa em São Paulo nos anos 1940. A versão em português, ainda inédita, é narrada pela atriz Simone Kliass, a voz oficial do aeroporto de Guarulhos.
O outro 100% nacional da lista é “Fogo na Floresta”, de Tadeu Jungle, narrado por Fernanda Torres. O documentário em 360° acompanha uma aldeia indígena no Mato Grosso.
Há ainda mais um brasileiro, “Crianças Não Brincam de Guerra”, coprodução com Uganda e Estados Unidos.
O filme em 360° é narrado em inglês, apesar de ser dirigido pelo brasileiro Fabiano Mixo, e conta a história de uma menina em meio à guerra em Uganda. Os demais vêm de países como Estados Unidos, França, Bélgica, China, Alemanha, Egito, Ucrânia e Suíça.
A animação com traços de game “Um Outro Sonho” traz a história de um casal lésbico que foge do Egito. “Ayahuasca” tenta reproduzir a experiência de tomar o chá do título. Em “11.11.18”, o espectador se torna um soldado em uma trincheira da Primeira Guerra. “Gymnasia” tenta assustar o espectador com bonecões horripilantes. No otimista “Segundo Passo”, o espectador embarca em uma missão espacial e finca uma bandeira das Nações Unidas em Marte.
Há também infantis, como o chinês “Shennong: O Gosto da Ilusão”, releitura de uma lenda —spoiler: em determinado momento, o protagonista parece virar um super saiyajin.
A Mostra é uma das poucas oportunidades de assistir a esse tipo de conteúdo. “Aqui no Brasil, os festivais de cinema já estão abrindo uma programação especial para VR, só que ele fica restrito a um evento”, diz Rodrigo Terra, do estúdio Árvore, que desenvolveu “A Linha”.
“Depois de um grande festival, é muito difícil distribuir esse conteúdo porque a gente não tem espaços suficientes de realidade virtual. Aqui no Brasil tem menos ainda”, diz Terra, que também é membro do conselho consultivo da XRBR, entidade brasileira que reúne profissionais dessa área.
O mercado e a linguagem são novos, ao ponto de que não há nem sequer um nome bem definido para os espaços de exibição de realidade virtual. Terra menciona designações como “arcade”, “arena” e até “parque de diversões”. Esses espaços acabam se aproximando da indústria de videogames e afastando um público mais interessado em filmes “de arte”.
E por se tratar de uma seara nova, a realidade virtual ainda tenta encontrar uma identidade própria, de forma que a imersão e a interatividade sejam protagonistas da narrativa. A questão é evitar que só se transponha uma obra —que possivelmente funciona melhor em tela plana— para o VR.
Outro desafio é a língua. Na Mostra, só dois dos 19 filmes são em português. Em alguns, fala-se mais de um idioma estrangeiro. Se o estranhamento pelo idioma não for um objetivo consciente da narrativa, como oferecer esse conteúdo em VR para espectadores que não falam a língua da obra?
Para Terra, “ainda não se encontrou o melhor formato para trabalhar uma tradução” e que, em VR, “a legenda mais piora do que melhora o entendimento”. Além disso, se o objetivo é a imersão, ter uma porção de letrinhas em Helvetica Bold 12 voando na sua frente pode comprometer a sensação de “realidade”.
Mas se o cursinho online de inglês não está dando resultado, não há motivo para desespero. Na Mostra, há filmes em que a linguagem falada não é central para o entendimento.
Em “11.11.18”, são vários os idiomas, o que pode deixar o espectador confuso —mas provavelmente era como um soldado se sentia numa trincheira repleta de tropas de nacionalidades diferentes. Em “Shennong”, o que importa é a linguagem verbal dos personagens.
Por outro lado, “Um Outro Sonho” tem depoimentos de duas egípcias falando inglês com um sotaque carregado, o que pode dificultar o entendimento mesmo de quem conhece o idioma. Quem não está acostumado com o sotaque ugandês pode encontrar o mesmo desafio em “Crianças não Brincam de Guerra”. Realidade virtual na 43ª Mostra Cinesesc, r. Augusta, 2.075. Até 30/10, das 15h30 às 20h30 (exceto neste sáb., 19, das 18h30 às 20h30). Grátis. Também disponível no Circuito Spcine, das 15h às 20h (consultar datas e endereços em 43.mostra.org)