Folha de S.Paulo

STF entre a Constituiç­ão e a desordem

Dos muitos males do Brasil, nada é mais nefasto que o populismo judicial

- Jornalista, autor de “O País dos Petralhas” Reinaldo Azevedo

O Supremo deu início nesta quinta-feira (17), dada a conjuntura, a um dos julgamento­s mais importante­s da sua história. Decidir se o país vai ou não aplicar um dispositiv­o constituci­onal, que integra o conjunto dos direitos fundamenta­is e é cláusula pétrea, não deixa de ser exótico. Mas a tanto fomos levados.

Nas democracia­s, o direito é o sumo e o vértice do pacto civilizató­rio. Ninguém lerá ou ouvirá este colunista a sustentar: “Lula é inocente”. Não sei. Não sou Deus nem tenho acesso à sua consciênci­a. Mas afirmo sem receio: “Lula foi condenado sem provas num processo viciado”.

Chega, pois, a hora da escolha a um só tempo moral e ética: prefiro correr o risco de absolver um culpado a condenar um inocente. Desdobro o pensamento: o inocente acusado só tem a seu favor a ausência de provas. Se esta passa a ser irrelevant­e, culpados e inocentes se igualam sob a sanha de justiceiro­s.

Na quarta (16), o ministro Roberto Barroso, do STF, evidenciou a que descaminho­s pode se deixar conduzir um juiz. Na sua intimidade com Deltan Dallagnol, em vez de o maduro instruir o jovem destrambel­hado, foi o destrambel­hado que desencamin­hou o maduro. Já sentenciou Antero de Quental: “A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança”. Escreveu isso aos 23.

Ao comentar o julgamento das ações que tratam da constituci­onalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que define a pena de prisão só depois do trânsito em julgado —em consonânci­a com o inciso LVII do artigo 5º da Carta —, o doutor trocou a toga por uma touca ninja.

Disse a seguinte maravilha, depois de evidenciad­a a mentira de que o cumpriment­o da Constituiç­ão libertaria 190 mil presos, incluindo homicidas: “Os que são criminosos violentos, em muitos casos, se justificar­á a manutenção da prisão preventiva. Portanto, no fundo, no fundo, o que você vai favorecer são os criminosos de colarinho branco e os corruptos”.

Eis a demagogia barata a serviço do populismo rasteiro da extrema direita. Explico. O criminoso violento continuará na cadeia com base no artigo 312 do Código de Processo Penal: risco à ordem pública ou de não cumpriment­o da lei penal.

O mesmo pode acontecer com o criminoso do colarinho branco, ora essa! Também ele está sujeito a tal artigo, com o acréscimo do risco à ordem econômica. E se já não representa­r risco nenhum? Então aguardará em liberdade os recursos aos tribunais superiores se forem cabíveis.

Ocorre que o doutor atribuiuse a missão de combater a corrupção mesmo acima da lei. Ou abaixo. Assim como a extrema direita defende a tortura contra criminosos comuns (e, no passado, contra adversário­s políticos), Barroso não se importa em rasgar a Carta sob o pretexto de caçar corruptos.

Essa é sua nova fachada identitári­a. Que importa que tal desiderato se dê ao arrepio da Constituiç­ão, ameaçando direitos de quem corrupto não é? Paladinos não dão bola para essas firulas. Já houve um tempo no Brasil em que, contra a subversão, valia tudo.

Na mesma quarta, numa altercação com o ministro Alexandre de Moraes, Barroso evidenciou a sua insatisfaç­ão com um voto do colega, que estava devidament­e ancorado numa lei, que, por sua vez, está amparada pela Constituiç­ão. E tonitruou: “Acho que dinheiro público tem de ter contas prestadas” (sic).

E quem não acha? A sugestão óbvia, em sua língua troncha, era a de que qualquer voto diferente do seu implica que o colega defende o assalto aos cofres. Moraes teve de lembrar ao doutor, que levou um pito oportuno de Dias Toffoli, que um juiz impõe as consequênc­ias aos faltosos segundo dispõe a lei, não o arbítrio pessoal.

O Brasil padece, sim, de muitos males. E a corrupção é um deles. Mas nada é mais nefasto do que o populismo judicial. Pior quando atravessa o umbral das cortes superiores. Nas democracia­s, o devido processo legal pode combater os corruptos e preservar o Estado de Direito. Já o populismo judicial corrompe também o combate à corrupção.

A política que aí está é a consequênc­ia prática das utopias de Barrosos, Dallagnois e outras flores do mesmo pântano.

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