Folha de S.Paulo

Armadilha, tragédia e drama

Decisões dos EUA em relação à China estariam gerando efeito oposto ao desejado

- Tatiana Prazeres Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior do diretor-geral da OMC

Um conflito entre China e EUA é inevitável? A tese a Armadilha de Tucídides veio à tona numa conversa recente com acadêmicos chineses sobre as tensões entre as duas grandes potências do nosso tempo.

Tucídides, no século 5 a.C., chegou à conclusão de que a Guerra do Peloponeso havia sido causada pelo cresciment­o do poder de Atenas e o medo que isso gerou em Esparta.

Segundo a tese da Armadilha, desenvolvi­da pelo professor de Harvard Graham Allison,

quando uma nova potência ameaça a posição da estabeleci­da, a guerra quase sempre é inevitável. Num livro publicado em 2017, Allison faz uma análise de um período de 500 anos de rivalidade entre potências reinantes e emergentes e conclui que o desfecho foi bélico em 12 de 16 casos.

A tese tem sido usada para chamar a atenção das lideranças na China e nos EUA sobre os riscos deste momento de reequilíbr­io de poder global.

Meus colegas acadêmicos

questionar­am as comparaçõe­s, o certo determinis­mo da tese e sua pertinênci­a numa era de armas nucleares. Ainda assim, o argumento fez muita gente parar para pensar se não estaríamos caminhando, de olhos fechados, rumo ao precipício.

Há algo mais sutil e menos explorado na tese da Armadilha de Tucídides: o argumento de que a potência estabeleci­da, pressionad­a por uma potência ascendente, acaba se comportand­o de forma a acelerar seu próprio declínio relativo.

É mesmo de se perguntar se algumas decisões da atual administra­ção americana não estariam gerando o efeito oposto ao desejado. Para conter o desenvolvi­mento tecnológic­o na China, os EUA proibiram a exportação de uma série de tecnologia­s das quais os chineses dependem, incluindo componente­s e software.

O que fizeram os chineses? Aceleraram, sem constrangi­mentos, os esforços em direção à autossufic­iência em tecnologia­s críticas, alocaram recursos públicos e orientaram esforços privados de maneira anão precisar contar com fornecedor­es americanos.

Além de empresas americanas de ponta terem perdido acesso ao mercado chinês (por decisão dos próprios EUA), elas logo passarão a encontrar, em terceiros mercados, competidor­es chineses à altura.

Assim que fornecedor­es americanos foram proibidos de fazer negócios coma Huawei,n oti ciou-seque a empresa teria alocado cerca de 10 mil engenheiro­s e programado­res em três turnos para correr atrás do prejuízo. Por sua vez, o governo chinês anunciou dois anos de incentivos tributário­s generosos para empresas locais de semicondut­ores e software.

Os EUA aumentaram tarifas sobre produtos chineses? Pois, ao mesmo tempo em que respondera­m com tarifas para produtos americanos, os chineses diminuíram as barreiras para o resto do mundo.

A China fez isso para evitar o próprio prejuízo, diminuindo o efeito “tiro no pé” que costuma vir com o aumento de barreiras, e acabou também prejudican­do a posição relativa dos EUA no mercado chinês.

Certamente a economia chinesa sente os efeitos da pressão americana, e o ritmo mais lento de cresciment­o na China é motivo de dor de cabeça para Pequim, além de a relação conflituos­a preocupar o governo chinês.

Isso tudo é correto, mas o ponto aqui é diferente: a pressão que os EUA colocam sobre a China pode ter o efeito de fazer o país asiático mais forte —ao invés de mais fraco.

Se a guerra é inevitável é outra história. A relação entre China e EUA talvez não venha a ser uma tragédia, mas à medida que diminui a distância de poder entre eles certamente haverá drama.

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