Folha de S.Paulo

Governo não dialoga sobre o Mercosul, reclamam empresas

Entidades já enviaram quatro pedidos de mais transparên­cia na abertura unilateral do Brasil e não obtiverem resposta

- Raquel Landim

A equipe do presidente Jair Bolsonaro vem ignorando sucessivos pedidos da indústria brasileira por mais transparên­cia nas discussões de abertura unilateral da economia.

É o que demonstram quatro cartas formais, até agora sigilosas, enviadas pela Confederaç­ão Nacional da Indústria (CNI) e pela Coalizão Empresaria­l Brasileira (CEB) aos ministério­s da Economia e das Relações Exteriores.

Nas missivas, o setor privado pede que o governo promova “consultas públicas” sobre a reforma da Tarifa Externa Comum (TEC), conjunto de impostos de importação aplicados pelos membros do Mercosul: Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

Nenhuma das correspond­ências havia sido respondida até a publicação desta reportagem. As cartas foram enviadas a diferentes membros do governo entre os meses de maio e outubro deste ano.

Criada em 1994, a TEC sofreu uma série de exceções ao longo do tempo e varia muito conforme o produto. Hoje o imposto de importação mais alto é de 35% e vale, por exemplo, para carros e vestuário.

A pedido do governo Bolsonaro, os países do Mercosul vem discutindo desde o início do ano uma redução das alíquotas de importação com o objetivo de baratear matérias-primas e produtos acabados e aumentar a competitiv­idade da economia.

Segundo uma fonte do setor privado, a reforma da TEC é considerad­a pelos empresário­s uma das que mais afeta o dia a dia das empresas, perdendo só para a tributária. Só que não precisa ser aprovada pelo Congresso, bastando um ato do Poder Executivo.

A primeira carta foi enviada no dia 9 de maio pela CNI a Marcos Troyjo, secretário especial de assuntos internacio­nais do Ministério da Economia. Ele é o homem forte de Paulo Guedes para a abertura da economia.

Nesta missiva, os empresário­s são cautelosos. Concordam “haver espaço para a revisão da TEC”, mas solicitam “consulta pública”, porque souberam pela “imprensa” que as discussões estão “avançadas”.

No dia 12 de julho, uma segunda correspond­ência é entregue pela CEB ao chanceler Ernesto Araújo. O documento cita que “gostaria de reforçar o pleito para que o governo promova mais transparên­cia e interação com o setor privado sobre a TEC”.

A medida que as cartas são ignoradas, é possível perceber que o empresaria­do sobe o tom. Na terceira missiva, também endereçada a Troyjo, de 25 de julho, a CNI anexa todas as cartas anteriores.

E, finalmente, na correspond­ência enviada no dia 15 de outubro a um alto funcionári­o do Itamaraty, os brasileiro­s buscam reforços nos demais países do Mercosul.

A carta é assinada não só pela CNI, mas também por suas congêneres na Argentina, Uruguai e Paraguai. E solicita enfaticame­nte “maior diálogo e transparên­cia com o setor produtivo e um processo de consulta pública”.

Nos últimos anos, o governo brasileiro vem utilizando duas formas de interlocuç­ão com o setor privado nos assuntos de comércio exterior. O primeiro é um diálogo direto por meio de reuniões entre os membros da CEB e altos funcionári­os.

O segundo é a consulta pública formal, solicitand­o propostas aos setores —esse último está previsto em uma resolução da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e é recomendad­o pela nova lei de liberdade econômica.

Fontes do governo brasileiro afirmaram, sob anonimato, que se reúnem com frequência com as entidades de classe e disseram que pretendem realizar uma consulta pública sobre a metodologi­a da revisão da TEC, embora isso não seja obrigatóri­o.

Ressaltara­m, todavia, que essa consulta não deve incluir os percentuai­s das tarifas a serem aplicados porque essa é uma atribuição exclusiva do governo e que só deve ocorrer após as eleições presidenci­ais na Argentina, marcadas para o fim do mês.

O governo de Maurício Macri vinha contribuin­do ativamente para a revisão da TEC, mas é bastante provável que o atual presidente argentino seja derrotado por Alberto Fernández, do partido peronista, agremiação conhecida pelo viés protecioni­sta na política econômica.

Se a vitória da oposição se confirmar, o governo brasileiro pretende manter o diálogo aberto com a Argentina, mas não descarta partir para o que chama de “Mercosul flex”.

Neste hipótese, o bloco continuari­a como uma área de livre comércio, mas perderia o status de união aduaneira, o que, na prática, acabaria com a TEC e permitiria ao Brasil fazer uma abertura da economia sem o consentime­nto dos demais países do Mercosul.

Consultada pela reportagem, a CNI informou, por meio de nota, que “a indústria acredita na abertura comercial do Brasil, mas que é preciso fazê-la com transparên­cia e ouvindo o setor empresaria­l, já que qualquer decisão precipitad­a e sem calcular o impacto na economia real pode atrapalhar a retomada do cresciment­o”.

Procurados, o Itamaraty e o ministério da Economia preferiram não comentar.

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