Folha de S.Paulo

A história da primeira medalha

Primeira seleção feminina de futebol de areia conquista bronze em Mundial

- Jornalista, passou por ESPN e BBC. Escreve no Dibradoras, blog sobre mulheres no esporte Renata Mendonça

Na carreira de um atleta, toda conquista tem seu valor. Mas tudo começa sempre com a primeira. Por isso, a primeira medalha sempre tem uma história —de luta, superação e muito mereciment­o.

Das dez mulheres que embarcaram para Doha nos Jogos Mundiais de Praia para representa­r, pela primeira vez na história, uma seleção brasileira de beach soccer feminino, todas carregam consigo um passado dolorido e, muitas vezes, frustrante no esporte.

Algumas começaram no

campo, foram para a areia, tentaram o futsal, tudo para buscar uma alternativ­a que as permitisse fazer o que mais amavam: jogar bola. Não importava o terreno, desde que pudessem sentir a redonda nos pés. E elas passaram a vida inteira ouvindo “nãos”.

Não, porque você é menina. Não, porque isso não vai dar em nada. Não, porque isso não dá futuro. Não, porque você já viu alguma mulher sobreviver do futebol (de campo, de salão, de areia) no Brasil? Quinze, 20 anos atrás, nem Campeonato

Brasileiro tinha pra jogar (em nenhuma das modalidade­s). Era mesmo difícil pensar em futuro.

Mas, como ouvi uma vez de Roseli, uma das nossas pioneiras no campo, desistir daquilo que se ama não é uma opção. Essas mulheres fizeram o contrário, insistiram.

Foram jogar no campo, como Dani Barboza, 37, jogou pelo Fluminense neste ano. Foram jogar nas areias geladas da Polônia e da Rússia, como fez Bárbara Colodetti para ter sustento com o chamado beach soccer.

Fizeram vaquinha na internet para poder viajar para a premiação de melhor jogadora do mundo no futebol de areia, como aconteceu com Letícia Villar, que ficou entre as três em 2017, quando a modalidade não tinha qualquer reconhecim­ento da confederaç­ão brasileira.

Até que, finalmente, em outubro deste ano, quase três décadas depois que a seleção masculina foi formada, veio a seleção feminina. A Confederaç­ão Brasileira de Beach Soccer fez sua primeira convocação entre as mulheres, realizou os primeiro treinos, confeccion­ou os primeiros uniformes e levou as mulheres pela primeira vez a uma competição oficial: os Jogos Mundiais de Praia, realizados em Doha.

Ali, o Brasil enfrentari­a as principais seleções do mundo, que já contam com algum apoio à modalidade há anos. Os favoritos eram Rússia, Inglaterra e Espanha. A seleção goleou Cabo Verde, venceu o México nos pênaltis, perdeu para a Espanha e teve uma derrota dolorida para a Inglaterra na semifinal após estar vencendo o jogo por 4 a 2. Na disputa do bronze, brilhou o espírito valente brasileiro diante da Rússia e veio a primeira medalha, com a vitória por 4 a 3.

Um time que só é time nas horas vagas, porque a maioria ali precisa ter emprego fora da areia para conseguir se sustentar. São jogadoras que tiveram inúmeros motivos para abandonar o esporte com raiva do mínimo que ele sempre lhes negou.

Em vez disso, elas saem do trabalho e vão à praia treinar. Pegam a filha na escola e levam junto para o jogo. Fecham contratos de um mês ou de algumas semanas apenas com clubes europeus para poderem se manter ativas em campeonato­s. Saem do Rio de Janeiro, do Espírito Santo, do Maranhão, e de todos os cantos desse país tropical, para enfrentar um frio de 9°C num país nórdico que leva o futebol de areia mais a sério do que nós.

Por tudo isso, esse bronze tem valor de ouro. Que seja a primeira de muitas medalhas e o início de uma mudança concreta para o reconhecim­ento da modalidade no país.

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