Folha de S.Paulo

O embaraço de estar vivo e só

W. S. Graham, um grande poeta do pequeno e do pouco

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

Um poema curto de William Sydney Graham começa com quatro linhas em branco, para que o leitor as preencha. Aí ele escreve o seguinte:

“Voltarei num instante Para ver o que você fez. Tente. Tente.

Sem querer ofender.”

W. S. Graham era pobre, arredio e alcoólatra. Morou de favor num trailer, pedia sapatos emprestado­s, comia mariscos e ovos de gaivota que catava na praia. Tinha muita saudade da Escócia natal, mas nunca voltou lá. Morreu em 1986. Deixou mulher e filha. Estava com 67 anos.

Ele não tinha lugar no mundo. Nem a sua poesia, ignorada por leitores e críticos. Isso apesar de ter sido defendido por dois pesos-pesados, com Nobel e tudo: T.S. Eliot, que o publicou na editora Faber, e Harold Pinter, que lhe deu dinheiro para se manter vivo.

Seu poema mais conhecido, o longo “A Pesca Noturna”, de 1955, diz:

“Bem suave bate o Sino do cais à noite, Abrindo uma porta Para que os mortos Trazidos à harmonia Falem alto em silêncio.”

E o silêncio falou bem alto: ficou 15 anos sem publicar. Correu o boato na Faber, pois poucos o conheciam fora dali, que morrera. Voltou enfim a lançar livros e ganhou um prêmio literário. Com o dinheiro, pôde fazer uma reforma e trouxe a privada para dentro do seu chatô.

Um dos poemas que publicou é dedicado a seu pai, Alexander Graham, traduzido acima, na ilustração de Bruna Barros.

Então. Sem querer ofender, tente escrever quatro linhas que parem de pé. Que tenham o seu jeito. Que não ecoem o tantas vezes dito antes por outros. Linhas límpidas que falem à fuligem do mundo. Tente. Tente. Graham voltará daqui a pouco para ver o que você fez.

É assim a sua curta obra — linhas em branco em busca de sentido. É aquilo que o pai lhe disse, mas o sonho não tinha som e não deu para escutar. É a suave vibração que fica no ar depois de o sino tocar à noite no cais. “É quase embaraçoso estar vivo e só.”

Seus poemas às vezes alternam o narrador. Em “Linhas sobre o Relógio de Roger Hilton”, ele fala sobre o presente que lhe foi legado por um amigo ao morrer. De repente, é o relógio de pulso que passa a escrever, e descreve o poeta:

“Ele acende a luz

Para pegar um cigarro Serve-se um Teachers Me pega e segura perto Do rosto solitário para

Ver meus ponteiros. Acha Que não está sendo olhado.”

A última palavra, “olhado”, no original é “watched”, que comporta “watch”, relógio. O poeta é “relojoado”.

Numa carta, considerou “encorajado­r” seu único almoço com Eliot. O escritor monumental disse ao miniaturis­ta que ele tinha um “ritmo maravilhos­o”. Por ser “intelectua­l”, porém, sua poesia estava fadada a “ir devagar” porque as pessoas têm “preguiça de pensar”.

Graham não era um intelectua­l, ao menos no sentido de se apoiar na erudição. Mas a partir daquele almoço seus versos ficaram mais palpáveis. Nem por isso ganharam leitores com rapidez.

Só há alguns meses a marcha lenta foi acelerada, com a edição de duas coletâneas suas, uma na Inglaterra e outra nos Estados Unidos. Até os críticos, essas lontras preguiçosa­s, passaram a estudá-lo.

Eles vêm martelando que a concretude de seus versos mira os outros lá fora, dos quais o poeta se esquiva. A linguagem é tida como um entrave porque ela é movediça como as pessoas, como Graham, como a vida. Sua obra não tem os floreios de um escritor ensimesmad­o.

“Preâmbulo”, por exemplo, diz: “Não importa quem é você/ Não importa quem sou eu”, porque o seu livro “sem propósito ou motivo” se fez “por si mesmo e pelas circunstân­cias”. Ele não se destina a ninguém “e agora é deixado como um objeto/ para ser encontrado por mais alguém”.

A poesia de Graham —inédita no Brasil— se contrapõe à inarmonia do mundo e passa adiante um pouco do que restou:

“Então falei e morri. Então dentro da morte Da noite e da morte de Minha vida estas palavras Morreram e acordaram.”

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Bruna Barros

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