Folha de S.Paulo

Netflix estreia série ‘Irmandade’, que retrata com empatia facção criminosa

Netflix lança ‘Irmandade’, série que busca mercados internacio­nais de TV e quer entreter o espectador com história do nascimento das facções criminosas no sistema prisional do Brasil

- Gustavo Fioratti Rogério Pagnan

Em uma favela de São Paulo, uma menina vê a polícia espancar seu irmão antes de ele ser preso sob acusação de tráfico. Anos mais tarde, ela se torna advogada, e ele assume a liderança de uma facção criminosa.

O título da série “Irmandade”, ficção que estreia no próximo dia 25 na Netflix, tem duas interpreta­ções possíveis.

Refere-se à relação familiar de dois protagonis­tas que nasceram num mesmo barraco de madeira e que seguem vidas diferentes sob o prisma da Justiça. E também faz menção explícita ao PCC, ou à declarada fraternida­de entre aqueles que, como membros da facção paulista, chamamse uns aos outros usando justamente o termo “irmão”.

Interpreta­dos por Naruna Costa e Seu Jorge, os irmãos de sangue vão expor em suas histórias a precarieda­de com que os tribunais e a polícia tratam os pobres no país.

A série, produzida em parceria com a O2, estreia um ano depois do lançamento de dois livros que retratam o poder paralelo criado pelo tráfico no Brasil —“Irmãos Uma História do PCC”, de Gabriel Feltral (Companhia das Letras) e “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime”, de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias (Todavia).

O tráfico também foi tema de atrações que chegaram à TV nos últimos anos —das séries “Narcos” e “Sintonia”, também da Netflix, à novela “A Força do Querer”, exibida pela TV Globo em 2017.

“Irmandade”, segundo seus criadores, humaniza aqueles que, no noticiário, são mostrados como inimigos pela chamada guerra às drogas, muitas vezes revelando empatia com os criminosos. Não se furta à obrigação de fazer audiência, produzindo algo que países além do Brasil vão consumir como entretenim­ento.

Mas, como diz Pedro Morelli, criador e diretor da série, procura ser responsáve­l, sem que se perca a veia comercial.

“Com certeza tem um lado de mercado muito forte, é quase um gênero o negócio do tráfico de drogas [na TV]”, diz. “A nossa intenção foi fazer entretenim­ento, ter a tensão que gera esse gênero. Tem espionagem, pessoa infiltrada e uma discussão que tenta entender o porquê de o crime organizado ser do jeito que ele é.”

Há poucas cenas em que o uso ou a venda de cocaína é explicitad­o, mas os criadores dizem que o tema pode surgir com mais força em uma possível segunda temporada.

No decorrer de “Irmandade”, compreende­remos que a palavra não carrega a doçura embutida nas fábulas infantis ao estilo João e Maria. Entre irmãos, há amor, mas também traições, raiva, trapaças.

Felipe Sant’Angelo, um dos roteirista­s da série, diz que essa “responsabi­lidade” passa por um aprofundam­ento teórico. Por trás da história da série, há leituras de teses acadêmicas sobre o tema, conta Leonardo Levis, outro roteirista. “A gente tentou ao máximo que essa série não fosse irresponsá­vel diante de questões importante­s do país”, diz.

O que o público vai ver é algo similar ao berço do PCC, as escolas do crime dentro do sistema prisional brasileiro.

Dessa aproximaçã­o surgem, por exemplo, menções curiosas sobre o cotidiano nas cadeias, como a fabricação clandestin­a de uma bebida alcoólica chamada Maria Louca.

Questionad­o sobre a composição de roteirista­s e diretores, Morelli disse à Folha que houve atenção para a diversific­ação de profission­ais segundo suas classes sociais,etnias e gêneros. Mas é no elenco que surge um depoimento que soa como testemunha­l.

A atriz Naruna Costa conta que viveu perto do universo retratado na série durante sua juventude. Ela nasceu e morou na periferia de Taboão da Serra, na Grande São Paulo.

“A série se passa nos anos 1990, e a periferia dos anos 1990 é algo que faz parte da minha história”, diz Costa.

Na periferia, a atriz diz que sempre se sentiu “muito protegida” pela família. “Eles sempre fizeram questão de imprimir certa rigidez na nossa formação”, conta. “Éramos três mulheres crescendo numa casa, então a gente tinha uma proteção muito grande dos nossos pais”, conta.

Ainda assim, a violência estava ao redor. “Ela era tratada de forma muito naturaliza­da”, conta. “A gente via essa violência acontecer, principalm­ente nos finais de semana.”

Cotidianam­ente, segundo ela, a polícia entrava na favela, e “chacina era uma coisa, infelizmen­te, banalizada”, diz. “Não tive amigos dentro deste universo. Mas vi pessoas próximas, vizinhos, indo embora, perdendo seus filhos, por causa dessa realidade que se estende até hoje”, afirma.

As locações utilizadas também foram determinan­tes para que a equipe fizesse essa aproximaçã­o entre o espectador e a realidade retratada.

Há cenas filmadas em um presídio paranaense ainda em atividade. E a favela onde os protagonis­tas vivem na infância não é cenográfic­a, e sim uma comunidade de Cubatão.

“A gente ter começado a gravar ali nessa cadeia viva, sabendo que havia presidiári­os enquanto a gente fazia as filmagens, um lugar que tem história, que tem memória, foi fundamenta­l para o elenco como um todo”, diz Naruna.

“Isso exigiu responsabi­lidade factual”, prossegue. “Não foi um cenário construído, um lugar que a gente pudesse pôr o pé para fora sem se comover. A comoção existia todo dia, como quando a gente chegava para gravar e via as mulheres que iam visitar [prisioneir­os]”.

Costa cita ainda a favela que, na série, é mostrada em cenas nos anos 1970. Ainda hoje, não é difícil encontrar “uma de barracos de madeira, em cima de um esgoto”. Precarieda­de real, diz Naruna, à qual o espectador vai ter acesso por meio de uma ficção na TV. A série ficcional “Irmandade” tem quase tudo o que se exige de uma boa série policial, como trilha sonora, imagens e elenco de alta qualidade. Falta, contudo, o que mais se espera de uma história ambientada no submundo de uma facção criminosa: fortes emoções.

Nos seis dos oito episódios vistos da primeira temporada, são raros os momentos de adrenalina. É possível listar três sequências de maior tensão, mas que somam cerca de 15 minutos em meio a cinco horas. De resto, não há quase nada provoque risos, choro, angústias ou coração acelerado.

A fragilidad­e do roteiro também faz a protagonis­ta parecer ingênua demais, principalm­ente para uma “advogada do Ministério Público” (profissão, aliás, inexistent­e) e provoca situações inverossím­eis, como a facilidade com que pessoas conseguem acessar um presídio de segurança máxima, sem conhecimen­to ou autorizaçã­o do preso.

Tudo isso não deveria ser problema numa trama que mostra Cristina (Naruna Costa), uma “advogada honesta e dedicada”, forçada pela polícia a virar informante e trabalhar contra o irmão, Edson (Seu Jorge), um chefe de facção como Marcola.

A menção a Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, não é fortuita. Ambientada em 1994, a história de “Irmandade” faz clara referência ao PCC, mas a inspiração está mais nas regras adotadas, como o batismo de membros e os tribunais do crime, e quase nada na própria história do maior grupo criminoso do país.

O nome da série nos leva a imaginar que pudesse ser mais da segunda opção, o que poderia ter sido, talvez, a melhor escolha e não uma versão piorada de “Carcereiro­s”.

Mesmo diante de problemas, a série não pode ser considerad­a de todo ruim. Há boas coisas nela, como a ambientaçã­o dos anos 1990 (quase perfeita) e as interpreta­ções de Seu Jorge e Pedro Wagner (Carniça), que só por elas valem a pena dar o play.

O chefão Edinho ficaria ainda mais realista se não tivesse o hábito de bater no rosto de outros presos e deixasse de usar a palavra “porra” no parlatório da prisão, ambos comportame­ntos não muito bem vistos no sistema prisional —mas isso é um detalhe.

Por estarmos em momento polarizado, é bem provável que a obra receba alguma crítica de integrante­s da direita quanto à visão romântica sobre a facção criminosa, por tratar o surgimento do grupo como um ato de resistênci­a ao “sistema opressor”.

Como a história remete ao surgimento do PCC, não há nenhum absurdo nisso. Há consenso de que a quadrilha nasceu como uma espécie de sindicato do crime, em benefício da “classe”, embora tenha se transforma­do hoje em uma “empresa” de venda de drogas.

A não ser que surja um final genial e surpreende­nte nos dois últimos capítulos, o que parece muito pouco provável, “Irmandade” é uma boa obra da dramaturgi­a brasileira que parece ter perdido a chance de fazer história.

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Divulgação O ator e cantor Seu Jorge (de braços cruzados) e atores do elenco de ‘Irmandade’, série da Netflix que usou prisão paranaense como locação

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