Folha de S.Paulo

A charada do Coringa

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Não assisti a “Coringa”, mas tenho uma ou duas ideias sobre a relação entre condições sociais e crime que gostaria de discutir.

Para a esquerda, são determinaç­ões sociais, como a desigualda­de ou o abandono, em especial na infância, que forjam o bandido, que seria mais uma vítima do que um perpetrado­r, enquanto, para a direita, o que importa são disposiçõe­s individuai­s, que podem até ter base hereditári­a. A realidade, como sempre, fica no meio do caminho entre as explicaçõe­s mais caricatura­is.

Para além dos estudos que ligam os maus-tratos na infância a comportame­ntos antissocia­is (ainda que não necessaria­mente criminosos), há toda uma família de experiment­os psicológic­os (Milgram, Zimbardo) que mostram que mesmo pessoas mentalment­e saudáveis podem, diante de um pouquinho só de pressão dos pares ou de autoridade­s, ser levadas a cometer atos reprovávei­s e até ilegais.

Na outra ponta, a literatura registra casos de certos tipos de demência e até de tumores estrategic­amente localizado­s que levam as pessoas a meter-se em encrencas com a lei. Essas situações de crime inegavelme­nte orgânico estão longe de ser a regra, mas há todo um gradiente de traços de personalid­ade, além de patologias, que podem compromete­r a capacidade do indivíduo de controlar seus impulsos.

O sujeito pavio-curto, especialme­nte se possuir uma arma e frequentar bares, tem mais chance de cometer um crime violento do que o cara fleumático que não sai de casa. Nesses casos, a relação nunca é determinis­ta, mas probabilís­tica.

O assustador é que, quanto mais avançarmos nossa capacidade de fazer esses cálculos —e ela deve avançar bastante na esteira do “big data”-e mais nos empenharmo­s em adotar medidas preventiva­s, mais nos aproximare­mos de um cenário distópico, em que indivíduos se tornam objeto de uma ação dissuasóri­a do Estado antes mesmo de cometerem um crime.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil