Folha de S.Paulo

Ecos que ainda vêm da casa-grande

Destino da imprensa está atrelado à importânci­a que dá a 56% da população

- Flavia Lima

Em homenagem ao Dia da Criança, no último sábado, o Correio Braziliens­e publicou fotos de 27 crianças sob o título “Elas são o futuro do Brasil”. Todas elas eram brancas. Após protestos de leitores, o jornal veio a público pedir desculpas. Recorrendo à ideia de um país miscigenad­o, reconheceu o erro como “gravíssimo”.

O retrato escolhido pelo principal jornal de Brasília dialoga, ainda que de modo inconscien­te, com algo em que acreditava­m alguns intelectua­is no fim do século 19: a ideia de que a miscigenaç­ão embranquec­eria o país e o faria avançar no processo civilizató­rio.

Mais de um século depois, o Brasil tem uma cara muito diferente. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a), os negros —a soma dos que se declaram pretos e pardos— representa­m 56% da população.

A despeito disso, a imagem que a imprensa continua fazendo do país é majoritari­amente branca. Por quê?

Um longo texto da revista Piauí de outubro (“Letra Preta”) indica que a quase ausência de negros produzindo conteúdo e decidindo os rumos das redações é uma boa explicação.

Quanto menor a diversidad­e, menor a pluralidad­e de visões e de representa­ções.

É por isso que falta sensibilid­ade para perceber quão absurdo é excluir crianças negras desse tipo de cobertura, sobretudo num momento em que elas enfrentam tanta violência.

Um levantamen­to informal aponta que a Folha e o Agora, periódicos do mesmo grupo, têm, juntos, cerca de 300 profission­ais em suas redações. Seis são negros. Pretos e pardos correspond­em, portanto, a 2% do total de jornalista­s do maior periódico do país.

Numa contagem feita no site da Folha, entre os cerca de 130 colunistas há 5 negros.

Isso não quer dizer que não existam avanços. A diversidad­e tem sido aos poucos incorporad­a como um valor também pela grande mídia.

Vinicius Mota, secretário de Redação, reconhece que a fatia de negros no jornal é pequena e diz que o meio efetivo de aumentá-la

será a reformulaç­ão do processo de seleção de jornalista­s e trainees.

O leitor ou telespecta­dor também vem mudando. As novas gerações são mais sensíveis ao tema e reagem mais à discrimina­ção e ao racismo.

As redes sociais ajudam a verbalizar a indignação com rapidez e eficiência.

Recentemen­te, leitores reagiram no Twitter a reportagen­s da Folha sobre a inserção das mulheres negras na sociedade.

Intitulada “Maioria Invisível”, a ótima série parte do princípio de que as mulheres negras formam o maior grupo da população e, a partir daí, aponta vários obstáculos.

O leitor aproveitou a deixa para indicar outra invisibili­dade. “Quantos profission­ais negros atuam no grupo?”, questionou Kauê no Twitter.

Num outro episódio, um importante crítico de televisão recebeu comentário­s de desaprovaç­ão por ter se disposto a contar os erros cometidos pela âncora do Jornal Hoje, Maria Júlia Coutinho, que é negra.

Daniel Castro disse à coluna que decidiu expor os erros após ter recebido a informação de que o nervosismo da apresentad­ora pautou reunião da cúpula do jornalismo da Globo.

O recurso, disse, nunca havia sido usado antes porque essa foi a primeira vez em que ele se deparou com uma informação de bastidores desse teor —segundo a qual o motivo do temor eram erros no ar, como engolir uma letra ou palavra.

Na minha avaliação, é preciso partir de um conjunto maior

de indivíduos para observar se o padrão de erros está ou não dentro da curva esperada.

Se Castro tivesse feito isso, poderia ter contribuíd­o até para mostrar se a preocupaçã­o com a profission­al tinha mesmo fundamento. Não tendo feito, o ato soa discrimina­tório —no sentido de se dar tratamento diferencia­do a um grupo específico, social ou étnico.

Para o bem de múltiplos pontos de vista e o enfrentame­nto do racismo, a presença de negros na produção jornalísti­ca é um recurso fundamenta­l.

Alguém que diga que um título como “Rochelle usa ‘sexo com negão’ para se vingar de irmã drogada” (também no blog de Daniel Castro, em referência a uma novela) é constrange­dor e apela a um dos estereótip­os mais batidos reservados ao homem negro.

O processo pode também trazer dividendos. A equipe de Mídias Sociais da Folha observou a presença de negros e negras no Instagram do jornal nos últimos três meses.

Personagen­s negros apareceram em apenas 10% das postagens. Mas, ao olharmos a soma de curtidas, comentário­s e compartilh­amentos, algo valioso nas redes sociais, negros aparecem em 3 das 10 postagens mais engajadas.

Ainda que os negros fossem uma minoria, merecíamos ser bem representa­dos na mídia. Sendo maioria, é uma questão também de democracia.

O destino da mídia está atrelado à atenção e à importânci­a que (não) dá a mais de 56% da população brasileira.

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Carvall

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