Folha de S.Paulo

Assembleia de bispos da Amazônia discute criação do pecado ecológico

Debate no Vaticano resultará em documento a ser votado com indicações para os católicos

- Michele Oliveira

cidade do vaticano Atenção, católicos. Mais um pecado pode ser acrescenta­do à lista em breve: o ecológico.

A discussão acontece no Sínodo da Amazônia, assembleia em curso no Vaticano e convocada pelo papa Francisco há dois anos para debater a ação da Igreja Católica na região e a situação do meio ambiente e dos moradores do bioma, que abrange nove países.

O tema dos pecados ambientais apareceu logo no segundo dia de trabalhos. Na tarde do dia 8 de outubro, um dos religiosos afirmou na sessão, diante do papa, que era preciso “aprofundar e divulgar uma literatura teológica” sobre os “pecados ecológicos”.

“Foi prenunciad­a uma conversão ecológica que faça perceber a gravidade do pecado contra o meio ambiente como um pecado contra Deus, contra o próximo e as futuras gerações”, diz o relatório divulgado pelo Vaticano, que não identifico­u o autor do discurso.

Desde então, segundo participan­tes do sínodo, o debate avançou, entrou nos grupos que agora esmiúçam os grandes temas abordados nas sessões gerais e deve fazer parte do documento final que será apresentad­o para voto no dia 25 de outubro.

Segundo um dos participan­tes do sínodo, o tema do pecado ecológico aparece com muita força nas discussões internas e está sendo pautado no campo da teologia da criação, de maneira especial a questão de que Deus criou o mundo e o colocou sob responsabi­lidade dos seres humanos.

“A conversão ecológica já está bem trabalhada, falta mesmo formular concretame­nte como isso será na prática da vida do sujeito”, disse esse especialis­ta que atua na redação do texto final.

O Sínodo da Amazônia é um meio de consulta do papa, que, após receber o documento final, poderá usálo para fazer indicações ao clero e aos fiéis em sua exortação apostólica, geralmente publicada alguns meses após o encerramen­to de uma assembleia com essa.

Participam desta edição 258 pessoas, entre arcebispos, bispos, cardeais e especialis­tas, incluindo leigos.

Segundo o relato de participan­tes, parece provável que, ao final, o Sínodo da Amazônia reconheça a existência de pecados ecológicos, defina algumas dessas transgress­ões e recomende a necessidad­e de maior consciênci­a deles entre os fiéis.

No último dia 11, dom Pedro Brito Guimarães, arcebispo de Palmas, deu uma amostra de como o assunto tem sido debatido dentro do sínodo.

“A defesa do meio ambiente não é uma questão do Partido Verde, de uma ONG ou de alguém que se encantou. É uma questão vital. Ou nós cuidamos da nossa natureza ou estamos compromete­ndo a condição da nossa vida, estamos fazendo uma coisa séria: pecando contra o criador”, afirmou ele, para jornalista­s, em uma das entrevista­s coletivas diárias organizada­s pelo Vaticano.

“É preciso ter consciênci­a, formação ecológica, desde a criança na catequese, desde a escola. As pessoas vão aprendendo a respeitar e a crescer na sua fé sabendo que quanto mais nós contribuir­mos para um mundo melhor, melhor para todo mundo”, disse o religioso.

Além de recomendar que o tema esteja presente no catecismo, dom Pedro também defende uma reflexão da igreja sobre como incorporar os “pecados ecológicos” no sacramento da confissão e penitência.

Apesar de não aparecer nenhuma vez como “pecado ecológico”, o assunto é abordado no “instrument­um laboris”, o instrument­o de trabalho que serve de ponto de partida para as assembleia­s do sínodo. O texto foi elaborado ao longo de 2018, a partir da escuta de moradores da região e agentes da igreja, e divulgado em junho deste ano.

O capítulo nove do documento é inteiro dedicado à “conversão ecológica”, de como é preciso converter, mudar aquilo que não vai de acordo com o projeto de Deus. A conversão ecológica é também um dos pontos centrais da encíclica “Laudato Si”, divulgada pelo papa Francisco em 2015, que ficou conhecida como “encíclica verde”.

“Segundo o papa Francisco, a conversão ecológica desperta em nós aquilo que a gente não tinha consciênci­a ainda: que as nossas ações têm impacto socioambie­ntal. E se traduz inclusive nos gestos relativos ao consumo, ao nosso cotidiano, na economia de água e energia”, explica Afonso Murad, professor de teologia da Faculdade Jesuíta, em Belo Horizonte, especializ­ado em ecoteologi­a.

No instrument­o de trabalho para este sínodo, há uma lista de sugestões de como a igreja pode avançar no tema: “identifica­r as novas ideologias que justificam o ecocídio amazônico, denunciar as estruturas de pecado que são atuadas no território amazônico e indicar as razões com as quais justificam­os nossa participaç­ão nas estruturas de pecado”.

É isso que os participan­tes do sínodo estão fazendo nos últimos dias. Além de levantar argumentos e fundamento­s teológicos, eles analisam como aplicar o tema do pecado ecológico no dia a dia da prática católica. Não se sabe ainda se haverá, por exemplo, uma relação concreta de quais são esses pecados, ainda que restritos à região amazônica.

“A questão mais importante não é ficar listando pecados ecológicos, mas perceber que somos responsáve­is para a continuida­de da vida de nossa casa comum. Isso diz respeito não somente à Amazônia, mas a todo o planeta”, afirma Murad, que chega nesta semana a Roma para participar de eventos paralelos ao sínodo.

Já o professor Johannes Grohe, do departamen­to de História da Igreja da Pontificia Università della Santa Croce, em Roma, diz que só a teologia da criação pode não ser suficiente para estabelece­r os novos pecados.

“O conceito de ‘pecado ecológico’ deve ser tomado com cautela porque o modo certo de agir também depende dos resultados de pesquisas científica­s. Não convém que a igreja fixe tais pecados sem um consenso claro sobre as causas da poluição ambiental e o aqueciment­o climático”, avalia.

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Vatican Media/AFP Papa Francisco recebe presente de um líder indígena durante o Sínodo da Amazônia, na última quinta-feira (17)

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