Folha de S.Paulo

Banheiro de posto: um caso de estudo

Além de agrilhoar a chave numa jangada, o posto nunca limpa o banheiro

- Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

A relação do posto de gasolina com seu banheiro precisa ser tratada na análise. Ou ele permite que usemos ou não. A gente entende. Todo mundo aqui é adulto. O que não pode é a questão seguir pairando nesta quarta dimensão para além do sim, do não ou do talvez: a neurose.

Você pergunta se pode usar o banheiro e o frentista faz aquela cara de secretária de consultóri­o médico quando indagada se tem wi-fi. (Taí outro tema pra crônica. E pra análise).

Você fica tenso, sente-se folgado (apesar de estar pagando R$ 250 pra encher o tanque), mas, assim que recebe a chave, a tensão some —solapada pelo constrangi­mento.

Para castigar a ousadia do cliente, o posto de gasolina acha de bom tom acorrentar a chavinha do banheiro numa tábua do tamanho de um morey boogie (millennial­s: Google), de modo que todas as pessoas num raio de seis quarteirõe­s saibam que aquele cidadão passando pela bomba de diesel em sua via-crúcis, ou melhor, em sua via-tabula, está indo ao encontro do chamado irrecusáve­l da natureza.

Fotos tiradas por astronauta­s em órbita, de noite, mostram as luzes das grandes metrópoles; de dia, pontos bege indicam todas as tábuas de chave nas mãos de todos os clientes aflitos em direção a todas as privadas de todos os postos de gasolina. Pálida, entre as manchas amadeirada­s, quase invisível, a muralha da China.

Imagino o posto deitado no divã. “Sei lá. Incomoda. A gente se esforça tanto pra oferecer gasolina, álcool, GNV, troca de óleo, calibragem, lavagem, encerament­o de pneu... Na conveniênc­ia é pra base de uns doze freezers. Cerveja especial. Chá verde. Vinho argentino. Uísque escocês. Pão de queijo recheado. Pão de queijo recheado sem glúten. Pão de queijo recheado sem glúten e sem recheio. Mas eles tão sempre querendo ir no banheiro. Quer dizer, tanto faz o posto, tanto faz quem a gente é, desde que tenha aquele buraco?”

Em represália, além de agrilhoar a chave numa jangada, o posto nunca limpa o banheiro. Jamais. Aposto que eles já abrem o posto com o banheiro imundo. Uma semana antes da inauguraçã­o o dono fica passando a mão num motor de jamanta e limpando na cordinha da descarga, para que já no dia um seja impossível acionar a válvula sem ter a sensação de que você vai pegar lepra e sarna e ebola e piolho no dedão e no indicador.

Por isso ninguém dá a descarga. Por isso, nas guerras, a Convenção de Genebra condena veementeme­nte o uso de gás mostarda, de gás sarin e de cheiro de banheiro de posto de gasolina.

O lixinho do banheiro do posto é um tesouro arqueológi­co. Em cima, o papel higiênico branco. Logo abaixo, a camada de papel higiênico cinza (circa 1996). Descendo algumas décadas (entre 1965 e 1993), a faixa já petrificad­a de papel higiênico rosa. Embaixo, uns trapos da época em que ainda não haviam inventado o papel higiênico. Na base de tudo, folhas de plantas usadas pelos índios no Brasil pré-cabralino.

Num azulejo da parede, entre “Chupa Bambi!” e “#FORATEMER”, talhada à espada, a prova de que os vikings estiveram aqui antes dos portuguese­s: “Öosgäard was here! 856 DC! Odin 4Ever!”.

No divã, o posto bufa. “Nada adianta! Eles continuam usando o banheiro!”. A analista o acalma. “Relaxa. Uma coisa de cada vez. Vamos primeiro tratar da sua fobia por ciclistas que usam a bomba de ar. Depois a gente passa pro banheiro. Você mencionou que o colorido das bermudas de lycra te dá vontade de jogar um cigarro aceso dentro de um caminhão tanque e acabar com tudo. Fala mais sobre isso.”

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Adams Carvalho

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