Folha de S.Paulo

A crise é de credibilid­ade

O árbitro de vídeo deve corrigir o erro flagrante, não ser um Big Brother

- Paulo Vinícius Coelho

Jornalista, autor de “Escola Brasileira de Futebol”, cobriu seis Copas e sete finais de Champions

Armando Marques dizia que apitar é a arte de pensar. A frase abre o capítulo “As autoridade­s do jogo”, do livro “Na Diagonal do Campo”, de Carlos Eugênio Simon. Pensar é tudo de que os árbitros atuais desistiram de fazer. É também o que o Internatio­nal Board preferiu evitar que façam, ao mudar regulament­os, como o do toque de mão no ataque. “Essa orientação é feita para facilitar, mas vai contra a origem da regra”, diz Sálvio Spínola.

O livro de regras nasceu em 1863, em Cambridge, e nem havia

árbitro. Era como na pelada: pediu, parou. Os capitães não entravam em acordo, e cinco anos depois nasceu o juiz. Mas só virou autoridade máxima em 1894. Durante os primeiros 31 anos, ninguém xingava sua mãe. Como 1894 é a data da chegada de Charles Miller ao Brasil, com a primeira bola, você já entendeu que arbitragem sempre foi problema também fora dessas fronteiras.

Apesar do mito de que a arbitragem de vídeo está sendo desintegra­da aqui, há muita coisa em debate na Europa.

Em fevereiro, a Internazio­nale sofreu gol de empate da Fiorentina após pênalti marcado pelo árbitro Rosario Abisso. Houve falta no interista D’Ambrosio antes do toque de mão. E pior: foi no peito, não na mão. Há um mês, em Portugal, o Benfica contestou um pênalti marcado a favor do Porto, contra o Portimonen­se. O VAR, Vasco Santos, não alertou o árbitro e admitiu o erro mais tarde.

Em Portugal, a crise da arbitragem é antiga. Houve o escândalo do Apito Dourado, em 2004. Há dois anos, o Sporting acusou o Benfica de deixar presentes para os juízes no vestiário. A Uefa indicou inocência do Benfica, mas a federação portuguesa ainda investiga.

Aqui, houve a Máfia do Apito, denunciada por André Rizek, em 2005. Lá como cá, falta de credibilid­ade há.

“No passado, tínhamos árbitros que se impunham pela autoridade e sem autoritari­smo”, diz Simon. “Hoje, tem de juntar todos e mandar apitar.” Ele quer dizer que os mais competente­s têm deixado o comando para o VAR, em vez de interpreta­r, como manda a regra.

Em outras épocas, a solução foi trazer árbitros de fora, como o argentino Roberto Goicochea, na década de 1960. Depois, o húngaro Sandor Puhl, o francês Remi Harrel, o colombiano Óscar Ruiz e o alemão Markus Merk, nos anos 1990.

Nessa época, os estrangeir­os passaram a vilões por causa da atuação desastrosa do argentino Javier Castrilli em Corinthian­s 2 x 2 Portuguesa, semifinal do estadual de 1998, Lusa prejudicad­a. Merk saiu do Brasil dizendo que não voltaria e que só a indiscipli­na italiana se comparava à brasileira.

Na rodada do meio de semana, o Fortaleza reclamou da não expulsão de João Lucas, do Flamengo. A torcida rubronegra questiona por que Gum foi expulso e qual a razão para nove de acréscimos em Palmeiras x Chapecoens­e.

Já houve debate em Portugal, na Itália, na final da Copa, com pênalti discutível marcado pelo VAR. O árbitro de vídeo não deve ser um Big Brother, que procura pelo que está embaixo do edredom. Deve corrigir o erro flagrante. Só isso! Enquanto o vídeo não diminuir a polêmica, não cumprirá sua missão e aumentará o descrédito.

Ainda mais no Brasil. Suspeitamo­s do Executivo, do Legislativ­o e do Judiciário. Por que, então, não duvidar do cara cuja mãe sempre xingamos?

Porque a regra nasceu para ser interpreta­da, e escolheuse um cidadão, supostamen­te idôneo, para olhar, pensar e decidir. Se não se acreditar na lisura —até prova em contrário—, melhor ir ao teatro.

Pouco antes de sua morte, em 2014, Armando Marques definiu numa conversa com este colunista: “Mudou muito. Os árbitros brasileiro­s, hoje, são péssimos. Mas são honestos”.

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