Folha de S.Paulo

O nascimento de uma ideia

Em livro, fundador e primeiro CEO desfaz lendas sobre a criação da Netflix

- Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

Reza a lenda que Reed Hastings teve a ideia de criar a Netflix depois de pagar uma multa de US$ 40 (cerca de R$ 165) por atraso na devolução de uma cópia de “Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo” na Blockbuste­r. A situação provocou um estalo: e se não houvesse multa por atraso?

“É uma história bonita. É útil. Como se diz no marketing, é emocionalm­ente verdadeira. Mas não é a história completa”, diz Marc Randolph, cofundador da Netflix e primeiro CEO da empresa.

No recém-lançado “That Will

Never Work” (isso nunca vai dar certo; Little, Brown and Company, 337 págs., R$ 111,57), Randolph desfaz, educadamen­te, a lenda. “Sim, havia uma cópia de ‘Apollo 13’ atrasada, mas a ideia da Netflix não tem nada a ver com multa por atrasos. Na realidade, no início, até cobramos por atrasos.”

Em 1997, uma pequena startup de tecnologia criada por Randolph havia sido adquirida por uma empresa de software que pertencia a Hastings, chamada Pure Atria.

Diariament­e, Randolph e Hastings iam juntos para o

trabalho de carro conversand­o sobre criar um novo negócio que envolvesse internet. O primeiro tinha muitas ideias e o segundo, dinheiro. Randolph diz que apresentou mais de 110 ideias, entre as quais de empresas de vendas de xampu, pranchas de surfe e bonés personaliz­ados.

Numa das muitas conversas, Hastings questionou: “O que você usa com razoável frequência?”. “Xampu”, respondeu Randolph. “Não. Chega de xampu”, reclamou o empresário. “Fitas de vídeo?” Foi neste momento que Hasting se lembrou da sua dívida na Blockbuste­r. E disse: “Talvez”.

Inventado alguns anos antes, o DVD começava lentamente a se apresentar como uma alternativ­a ao videocasse­te (VHS). E os dois sócios logo entenderam que a nova empresa deveria focar a tecnologia mais recente. Aluguel de DVDs de filmes pelo correio, a partir de um site na internet.

Para começar o negócio, levantaram US$ 2 milhões (cerca de R$ 8,2 milhões). Hoje, 22 anos depois, ele vale US$ 150 bilhões (ou R$ 620 bilhões).

A Netflix entrou em operação em 14 de abril de 1998. Randolph descreve, com algum humor, as dezenas de problemas que tiveram nos primeiros momentos. A venda de DVDs, inesperada­mente, fez muito mais sucesso do que o aluguel, ainda que o objetivo principal dos sócios fosse o inverso.

Quando se deram conta de que a Amazon, lançada alguns anos antes, iria entrar no comércio online de DVDs, os criadores da Netflix decidiram não mais vender e focar exclusivam­ente o aluguel de filmes, abrindo mão da principal fonte de faturament­o da empresa.

Ainda em 1998, Jeff Bezos sinalizou interesse em comprar a Netflix, mas Hastings e Randolph acharam que não estavam prontos para vender a empresa.

Em setembro de 2000, foi a vez da Blockbuste­r manifestar interesse. O CEO da empresa se esforçou para não rir quando Hastings deu o preço que queriam: US$ 50 milhões. O negócio, como se sabe, não foi feito. Dez anos depois, assolada pelo sucesso do serviço de streaming, a locadora declarou falência.

Randolph deixou a empresa em 2002, depois da abertura do capital na Nasdaq. Tinha 41 anos e estava milionário. “Pela primeira vez na minha vida adulta, eu não precisava trabalhar. E nunca mais precisaria”, escreve. Tornou-se consultor, investiu em inúmeras start-ups e dá palestras.

Duas são as principais lições do autor a futuros empreended­ores. A primeira está no título. “Isso nunca vai funcionar” foi a frase que sua mulher disse ao ouvir a ideia da Netflix. Não acredite em vereditos tão drásticos. A segunda é “ninguém sabe nada”. É a conclusão a que Randolph chega após tantos imprevisto­s, erros e acertos no caminho de construção da empresa.

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