Folha de S.Paulo

O príncipe e o bailarino

É mais fácil berrar ‘mito’ do que impor a todos a própria mitologia

- Angela Alonso Professora de sociologia da USP e pesquisado­ra sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to

No Dia das Crianças, o filho “príncipe” ou “mitinho” postou no Facebook: “O CPAC não é sobre Bolsonaro, governo ou políticos. É sobre nos identifica­r, saber o que é ser conservado­r e levantar nossas bandeiras. Assim, em meu discurso falai [sic] um pouco como combater na guerra cultural dando enfoque na juventude (“farmeme”) e depois discorri sobre a história do marxismo e revoluções do séc. 20, passando por Venezuela até chegar na eleição de 2018”.

Além de esbanjar tanta erudição histórica, Eduardo Bolsonaro completou suas infatigáve­is postagens sobre a Conferênci­a de Ação Política Conservado­ra do último fim de semana envergando uma camiseta

com a inscrição “Liberty, Guns, Bolsonaro, Trump” e a legenda “o conceito de LGBT foi atualizado”.

Muitos conceitos têm sido atualizado­s pelos bolsonaris­tas. Conservado­rismo é dos prediletos, celebrado com emoção por palestrant­es-ministros na conferênci­a. Transborda­ram orgulho com o sucesso de sua maneira de ver a política e o mundo. Governam.

E têm lastro. Multiplica­mse iniciativa­s de apoio. Fóruns conservado­res ocorreram ou estão agendados em Ribeirão Preto, Londrina, Belo Horizonte e Recife. Editoras como a É Realizaçõe­s e coleções como a Biblioteca Antagonist­a encharcam livrarias com títulos de orientação antiesquer­da

—além dos nacionais, há traduções de gurus internacio­nais, como Roger Scruton e Michael Oakeshott.

Contas nas redes sociais abundam em adeptos e há youtubers, sites, jornais, seminários e até uma pós-graduação dedicada a depurar as mentes de qualquer esquerdism­o.

Toda esta movimentaç­ão para a guerra cultural à maneira norte-americana se cristaliza em pelo menos 70 movimentos sociais antiesquer­da criados ao longo do governo Dilma. Não estão para brincadeir­a.

Mas daí a considerar tudo isso que bolsonaris­tas nomeiam “conservado­rismo” como fascismo vai passo largo. Vários intelectua­is o deram, adotando o termo escorregad­io que veste mal o fenômeno.

Primeiro porque os tempos são outros. A sociedade contemporâ­nea é mais complexa que a do miolo do século 20 e há a memória do Holocausto, obliterada por uns, mas não por todos.

Sobretudo, os bolsonaris­tas carecem da organicida­de ideológica e da organizaçã­o política da direita dos anos 1940. Seus cérebros não são o de Goebbels, seu partido não existe e seu enraizamen­to social é menor do que se avoca.

Todas as pesquisas de opinião mostram que os bolsonaris­tas de coração, alegres com todas as estultices do presidente, rodam na casa dos 12%. Franca minoria. Os outros votaram por desagrado com as demais opções disponívei­s.

Nas democracia­s há espaço para as minorias, à esquerda e à direita, desde que não atentem contra o Estado de Direito. Os bolsonaris­tas preferiria­m uma ditadura, verdade, mas suas trapalhada­s cotidianas evidenciam a incompetên­cia para impô-la. E os seguidos contrapont­os que vêm recebendo no espaço público e nas instituiçõ­es, no Brasil e no exterior, esclarecem que é mais fácil berrar “mito” que impor a todos a própria mitologia.

Contam com apoio movediço. Enquanto o conservado­rismo nos Estados Unidos vem se estruturan­do desde a Guerra Fria, aqui tudo é mais recente, assistemát­ico e bagunçado.

Os congressos conservado­res ianques têm lideranças políticas e intelectua­is de peso, cauda longa de mobilizaçã­o e aporte da indústria armamentis­ta. As três coisas faltaram à festa tupiniquim. Deixando a cena para o príncipe, nem o pai compareceu.

O conservado­rismo, com promessa de nova ordem moral e “nova política”, tem apelo. Mas está longe de ter se tornado hegemônico. O Brasil, no aforismo de Tom Jobim, não é para principian­tes. Fórmulas prontas, como fascismo, explicam pouco e mal o complicado da vida nacional e as oscilações de opinião conforme as conjuntura­s.

Só bots têm coerência ideológica absoluta, gente de carne e osso é contraditó­ria. Instituiçõ­es também. Veja-se a Fiesp. Até outro dia, ostentava o pato amarelo e o “nossa bandeira jamais será vermelha” e, agora há pouco, se vestiu com a bandeira chinesa.

Pessoas de baixa renda tampouco são ignorantes prontas para a hipnose de líderes totalitári­os, como alguns as veem. Se a economia não melhorar, muitos dos que gritam “mito” logo gritarão outra coisa.

Já o azul-e-rosa da ministra acha contrapont­o no humanismo cotidiano de cidadãos como o pedreiro Joilson Santos, que dança balé com as filhas autistas. Para o blá-bláblá conservado­r, o pai-bailarino respondeu com sábio desdém: “Não tô nem aí”.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil