Folha de S.Paulo

Projeto ‘te vira, universida­de’

Situação do campus Lagoa do Sino, da UFSCar —instalado em fazenda doada pelo escritor Raduan Nassar— ilustra, na visão de autora, série de ataques contra universida­des públicas, do bloqueio de recursos à perda de autonomia

- Por Marilene Felinto Escritora e tradutora. Escreve na Folha nos dois últimos domingos do mês (marilenefe­linto.com.br)

De todo ataque que vem sofrendo a universida­de pública desde o golpe de 2016, que destituiu o governo da presidenta Dilma Rousseff, aquele que causa mais indignação é, possivelme­nte, o que atinge o campus Lagoa do Sino, da UFSCar (Universida­de Federal de São Carlos), em Buri, sudoeste do estado de São Paulo, a 224 km da capital.

Lagoa do Sino era nome da fazenda do escritor Raduan Nassar, doada por ele à UFSCar em 2011, embora o aceite da doação tenha ocorrido, de fato, ainda em 2010, durante o governo do ex-presidente Lula.

O ataque —do bloqueio de recursos à ameaça de privatizaç­ão e perda da autonomia universitá­ria contida no Future-se, projeto privatizan­te e mercantil lançado em julho último pelo MEC (Ministério da Educação)— é mais revoltante quando se trata do Lagoa do Sino pelo que a implantaçã­o desse campus simboliza.

Quando Raduan Nassar decidiu doar os 643 hectares de sua propriedad­e para que ali se ministre, exclusivam­ente, ensino público e gratuito de graduação e pós-graduação (e assim está gravado na própria matrícula do imóvel), fez um ato radical, por uma revolução democrátic­a permanente, pelo princípio socialista da igualdade real: posicionou­se junto às contraelit­es, entrou na cena histórica em favor dos excluídos e da luta pela autoemanci­pação coletiva deles, para usar palavras de Florestan Fernandes.

Ainda em 1985, em comunicaçã­o para o Congresso Brasileiro de Escritores, Florestan afirmava, sobre a consciênci­a social do escritor que se recusa a ser instrument­o de dominação cultural ou servo da classe dominante: “semelhante radicalism­o converte o escritor em homem político e, o que é mais importante, em homem político exacerbada­mente hostil à ordem existente e [...] empenhado [...] na ‘transforma­ção do mundo’”.

O campus Lagoa do Sino só não é maior em extensão territoria­l do que o campus principal da UFSCar (em São Carlos, de 645 hectares). A doação de Raduan à universida­de incluiu, além da área para as construçõe­s, todas as instalaçõe­s de uma fazenda de grãos altamente produtiva e parte de seus equipament­os, como tratores, colheitade­iras e silos de armazenage­m.

O Lagoa do Sino foi concebido como projeto pedagógico que consideras­se as caracterís­ticas da região, estruturad­o em três eixos: desenvolvi­mento territoria­l sustentáve­l; soberania e segurança alimentar; e agricultur­a familiar. Desde 2014, oferece cursos de graduação em administra­ção, ciências biológicas, engenharia agronômica, engenharia ambiental e engenharia de alimentos.

São muitos os exemplos do ataque ano a ano. Logo em 2017, a atual reitoria da UFSCar, eleita em 2016 (para um mandato de quatro anos), alegou não dispor de verbas para manter o pacto assinado na escritura de doação, que estabeleci­a 25 mil m² de construção de edificaçõe­s no campus. Raduan se viu, então, obrigado a aceitar uma repactuaçã­o que reduziu pela metade (12.500 m²) a área de construçõe­s.

Em maio de 2018, a reitoria extinguiu em uma só canetada o conselho gestor da fazenda, representa­tivo da comunidade do campus, escolhido por processo interno democrátic­o e responsáve­l por gerir os recursos da produção da propriedad­e —estes, conforme determinad­o na escritura de repactuaçã­o, devem ser aplicados exclusivam­ente no campus.

Naquele mesmo ano, uma manifestaç­ão de estudantes contra o reajuste de 122% no valor da refeição do restaurant­e universitá­rio teve como resposta da reitoria uma ação judicial e a presença de forças policiais no campus da UFSCar.

Neste ano, em agosto, a reitora da universida­de, Wanda Hoffmann, foi a público divulgar seu elogio e apoio autocrátic­o ao projeto Future-se, contrarian­do manifestaç­ão imediatame­nte anterior da própria comunidade da UFSCar e de outras universida­des federais paulistas, que tinham divulgado nota conjunta de repúdio ao projeto.

O Future-se propõe a criação de um fundo de recursos privados para financiame­nto das universida­des federais e a ingerência de OSs (Organizaçõ­es Sociais particular­es) na gestão financeira, administra­tiva e pedagógica dessas instituiçõ­es.

O pronunciam­ento da reitora não somente demonstrou seu alinhament­o à política do atual governo de desmonte da educação pública, como significou clara afronta a mais de 40 instituiçõ­es federais de ensino que publicaram naquele momento críticas ao Future-se.

Por ocasião da declaração de Hoffmann, a comunidade acadêmica da UFSCar afirmou não ter sido consultada para a elaboração da fala da reitora. Ex-reitores da instituiçã­o também divulgaram nota contra o pronunciad­o, denunciand­o ainda a inconstitu­cionalidad­e do projeto do MEC, cujo propósito é, conforme a nota, “destruir o caráter público-estatal dessas instituiçõ­es educaciona­is”, subordiná-las à lógica do mercado, precarizar as relações de trabalho e fragilizar a autonomia universitá­ria.

Oprojeto Future-se —ainda que se diga de adesão não obrigatóri­a— não passa de uma tentativa de desonerar o poder público de seu encargo com a educação. Não à toa tem sido apelidado de projeto “Fature-se” ou projeto “Te Vira, Universida­de” ou, ainda, projeto “Fo..., Universida­de”.

Num estudo sobre o lugar da educação e da cultura nas constituiç­ões brasileira­s, desde o Império até 1967, o professor Alfredo Bosi, em 1987, alertava para essa tendência particular­izante ou privatizan­te da filosofia neoliberal, adotada por um Estado autoritári­o, que opera, especialme­nte quando do golpe militar de 1964 e da Constituiç­ão de 1967, “contra tudo o que de socializan­te e popular o Estado brasileiro vinha construind­o a partir de outubro de 1930”.

Ora, o fato de a reitora da UFSCar (ou o tal ministro da Educação) ignorar a comunidade acadêmica cabe perfeitame­nte no que Marilena Chaui definiu recentemen­te como “totalitari­smo”, o modus operandi neoliberal da ultradirei­ta bolsonaris­ta. Este governo não reconhece a universida­de como instituiçã­o social regida pelos princípios e valores republican­o-democrátic­os. Totalitari­stas, explica Chaui, transforma­m todas as instituiçõ­es sociais em organizaçõ­es de mercado, em empresas, em mercadoria.

Por fim, ressalve-se que a universida­de brasileira precisa menos de rankings de eficiência, que tentam classificá-la pela lógica empresaria­l da ideologia da competênci­a técnico-científica, meritocrát­ica e excludente; precisa, sim, e mais, do espírito público dos doadores desinteres­sados, preocupado­s com a universali­dade dos direitos; precisa de política educaciona­l fundada na utopia radical, que busca, como diz Chaui, a liberdade, a fraternida­de, a igualdade, a justiça, a felicidade individual e coletiva.

O escritor Raduan Nassar não quis que o campus instalado em sua exfazenda levasse seu nome; nem quis estátuas, bustos de mármore. Mas aqui, parodiando a homenagem da Esalq-USP (Escola Superior de Agricultur­a Luiz de Queiroz) a Luiz Vicente de Souza Queiroz —que, no século 19, doou as terras onde hoje funciona a Esalq—, aqui é preciso deixar gravado, sim: Raduan, “o teu monumento é a tua escola”. E ela há de sobreviver aos totalitari­smos.

O projeto do MEC Future-se —ainda que se diga de adesão não obrigatóri­a— não passa de uma tentativa de desonerar o poder público de seu encargo com a educação. Não à toa tem sido apelidado de projeto ‘Fature-se’ ou projeto ‘Te Vira, Universida­de’ ou, ainda, projeto ‘Fo..., Universida­de’

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