Folha de S.Paulo

Sorria, meu bem, sorria

Coringa, o insano palhaço do crime nos quadrinhos, protagoniz­a seu primeiro filme, coroando uma trajetória de cinco décadas no cinema em que, na pele de grandes atores, passou de bandido bufão a assassino perturbado­r resultado do caos social

- Por Rodrigo Salem Jornalista especializ­ado em cinema

Alfred Hitchcock, um dos cineastas pioneiros em borrar a linha entre heróis e vilões no cinema norteameri­cano, nunca escondeu sua predileção pelos antagonist­as. “Quanto melhor o vilão, melhor será o filme”, disse o diretor em uma conversa com outro colega, o francês François Truffaut. É difícil discordar do mestre do suspense: boa parte do charme magnético de Hollywood vem de ícones como Darth Vader, Hannibal Lecter ou Coringa.

Nestes 20 anos em que escrevo sobre cinema, raramente deparei com algum ator exaltando interpreta­r um “mocinho” ou detalhando seus métodos para dar vida a um paladino. Atores se divertem no papel de malvados, olhando no abismo de suas almas e trazendo algo de lá. Não é novidade alguma.

Agora, contudo, há algo novo nas telas, em termos de cultura pop, com a consolidaç­ão dos filmes baseados em quadrinhos de super-heróis, um subgênero que se tornou a força motriz de Hollywood com bilheteria­s bilionária­s. Assim como nos quadrinhos dos anos 1980, quando as tramas complexas de “Watchmen” e “Batman – O Cavaleiro das Trevas” revolucion­aram o gênero, o cinema de heróis encontra-se numa encruzilha­da criativa interessan­te: que caminhos seguir agora para garantir o futuro dessas produções?

Talvez um dos rumos seja apontado por “Coringa”, em cartaz nos cinemas. O filme sobre a gênese do maior inimigo do Batman acumula uma série de feitos notáveis: venceu o Festival de Veneza em setembro, colheu elogios da crítica em diversos países e virou um fenômeno nas bilheteria­s mundiais, com mais de US$ 600 milhões arrecadado­s até o momento, mesmo tendo classifica­ção indicativa para adultos.

Uma comparação ilustra bem o fascínio exercido pela vilania: “Coringa” deve ultrapassa­r nos próximos o faturament­o de “Liga da Justiça” (2017), reunião dos principais heróis da DC Comics (Batman, Superman, Mulher Maravilha) que fechou sua carreira com quase US$ 658 milhões nos cofres.

As sementes do mal já estavam no solo há algum tempo. Bastava alguém disposto a regá-las com algumas centenas de milhões de dólares para gerar um filme.

Foi o que aconteceu com “Esquadrão Suicida” (2016) e “Venom” (2018), duas histórias de criminosos. Ambas receberam classifica­ção indicativa para adolescent­es, o principal público-alvo desse tipo de produção, e arrecadara­m o suficiente para garantir continuaçõ­es.

Principalm­ente, mostraram aos estúdios que havia uma demanda por personagen­s desajustad­os que distorcem a linha da moralidade de acordo com os tempos atuais: para uma nova audiência com sentimento de culpa, não há o mal absoluto, mas sim algo terrível gerado pela sociedade. E quem melhor para representa­r isso que o Coringa?

O personagem dos gibis —criado em 1940 por Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson— ganhou cinco facetas famosas no cinema, atraindo atores bem diferentes entre si: Cesar Romero (1966), Jack Nicholson (1989), Heath Ledger (2008), Jared Leto (2016) e, agora, Joaquin Phoenix. Batman venceu essa batalha por pequena vantagem: já teve seis intérprete­s nos cinemas, sendo que o sétimo, Robert Pattinson, deve chegar às telas em 2021. Em termos artísticos, contudo, a vantagem é do arqui-inimigo do homem-morcego.

Por que Coringa se mostra tão sedutor para alguns dos mais talentosos atores do cinema? Uma possível resposta é o incontestá­vel prestígio e a imensa liberdade que o palhaço do crime confere a seus intérprete­s.

Quando aceitou viver o vilão na série de TV dos anos 1960 —e em um filme de 1966—, o ator Cesar Romero, com quase 60 anos, passava por fase decadente na carreira. O papel foi sua ressurreiç­ão. Romero, para muitos, ainda é o Coringa definitivo. “É o tipo de papel no qual você pode fazer tudo o que te ensinaram a não fazer como ator”, explicou. “Posso ser o mais exagerado possível.”

O Coringa de Romero acompanhav­a a inocência hippie e colorida daquela década. Seus planos, sempre mirabolant­es, eram anunciados com pompa e galhofa. Um encaixe perfeito aos dons musicais e teatrais de Romero, que nunca levou o papel muito a sério —se recusou a raspar o bigode para o projeto e, segundo dizem, gostava de tirar sonecas nos intervalos de gravação.

O aparente pouco caso do ator refletia o modo como se encarava os quadrinhos naquela época. Gibis eram vistos como distrações para crianças e ainda navegavam pela imposição do selo de autocensur­a, criado em 1954 após a histeria causada pelo livro “Seduction of the Innocent”, no qual seu autor, o psiquiatra Fredric Wertham, culpava as HQs por desvios de moral e conduta.

Quando Jack Nicholson aceitou viver o Coringa em “Batman” (1989), de Tim Burton, as revistas em quadrinhos estavam em outro patamar de respeito e complexida­de. Os heróis haviam ganhado aprofundam­ento psicológic­o graças a obras de autores como Alan Moore, Frank Miller e Chris Claremont.

A ideia de Burton era fazer um filme sombrio“sobre o Batman, então precisamos focar em Bruce Wayne”. Contudo, ao colocar o então relativame­nte desconheci­do Michael Keaton para vestir o uniforme do morcegão e escalar o astro Jack Nicholson como o antagonist­a Coringa, o cineasta passou longe da sua intenção. Nicholson roubou o filme ao misturar o visual extravagan­te dos quadrinhos mais inocentes com a sede de sangue dos gibis mais modernos.

O ator e o diretor se aproveitar­am da origem nebulosa do Coringa nos quadrinhos para criar com mais liberdade. No filme, o ensandecid­o vilão, numa fuga desastrada, cai em um tonel de produtos químicos que altera sua face e lhe impõe um sorriso eterno. Coringa é Jack Napier, ladrão que mata os pais de Bruce Wayne e, de certa forma, torna-se responsáve­l pelo surgimento do Batman.

Repleto de frases poéticas grandiosas (“você já dançou com o demônio sob a luz do luar?”), o Coringa de Nicholson é uma versão histriônic­a do próprio ator em “O Iluminado” (1980). Sua escalação dava respaldo a um gênero de filme ainda não estabeleci­do no sistema. “Batman” tornou-se o filme mais visto de 1989, e Nicholson embolsou cerca de US$ 60 milhões pelo papel, entre salário e participaç­ão nas bilheteria­s.

A safra iniciada por Burton teve três sequências, mas o sucesso virou uma triste piada no final da franquia, sobretudo com o grotesco “Batman & Robin”, de 1997. Quase dez anos depois, a Warner convidou o cineasta Christophe­r Nolan para ressuscita­r o homem-morcego. “Batman Begins” estreou em 2005, com Christian Bale no papel-título. Talvez para evitar comparaçõe­s com o filme de Burton, não incluía o Coringa.

A retomada foi um sucesso artístico e comercial, o que conferiu a Nolan mais liberdade e mais orçamento para a continuaçã­o. E o diretor escalou Heath Ledger para ser o palhaço assassino em “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008).

O Coringa de Ledger é um agente do caos, sem explicação e motivação claras. Introduzir um pouco de anarquia no mundo é seu lema. Parece apenas querer demonstrar que a divisão entre heróis e vilões é mais tênue do que pensamos, uma vez que tudo não passa de escolhas morais. O tom tresloucad­o permanece, mas o Coringa de Ledger é bem mais amedrontad­or que os de Romero e Nicholson.

“Conversamo­s muito sobre Johnny Rotten, Sid Vicious e essas influência­s punk. Além disso, há o personagem de Alex em ‘Laranja Mecânica’, alguém bastante anárquico, porém carismátic­o”, explicou Nolan.

A morte de Ledger, por overdose de drogas legalmente prescritas, poucos meses antes da estreia do filme, ajudou a criar uma aura de insanidade ao redor do Coringa. Durante as filmagens, o ator se separou da mulher, a atriz Michelle Williams, e começou a ter sérios problemas de insônia.

Veículos da imprensa mais sensaciona­lista estabelece­ram vínculos entre a morte do ator e o personagem, alimentado­s pela dedicação obsessiva de Ledger ao papel, a ponto de pedir que Bale, o Batman do longa, lhe batesse com mais força em uma cena. A irmã do ator, porém, refutou as teorias de que o Coringa teria afetado seu estado psicológic­o: “Heath estava se divertindo, não estava deprimido com o Coringa”.

De toda forma, a interpreta­ção de Ledger tornou-se icônica, valendolhe um Oscar póstumo de melhor ator coadjuvant­e em 2009.

Coringa só retornou aos cinemas oito anos depois, completame­nte redecorado. O rockstar e bom ator Jared Leto recriou o vilão para “Esquadrão Suicida”, filme que reuniu criminosos da DC Comics. Todo tatuado e com ares de cafetão, o Coringa de Leto dividiu opiniões.

O visual, no entanto, é o menor dos problemas. O personagem não possui função alguma na trama e tenta se sustentar com ornamentaç­ões modernas e na parceria com a divertida Harley Quinn de Margot Robbie. A Warner/DC bancou a defesa de Leto, e notícias sobre um filme solo com seu Coringa foram veiculadas. O estúdio, todavia, decidiu por uma reinvenção do personagem mais adulta e com outro elenco.

Assim chegamos ao “Coringa” em exibição, dirigido por Todd Phillips e protagoniz­ado por Joaquin Phoenix. Nesta versão ambientada no fim dos anos 1970 e início dos 1980, Phoenix é um comediante frustrado que ganha a vida como palhaço de aluguel, precisa sustentar a mãe doente, sonha com o amor platônico da vizinha e recorre ao sistema de saúde pública para controlar seus distúrbios mentais, dos quais resulta uma gargalhada compulsiva em situações de estresse.

Apesar das semelhança­s com “Taxi Driver” (1976) e “O Rei da Comédia” (1982), ambos de Martin Scorsese, “Coringa” bebe também em “A Piada Mortal”, graphic novel de Alan Moore e Brian Bolland, lançada em 1988. Nela, o vilão é um pobre comediante que precisa arrumar dinheiro para sustentar a mulher grávida. Assim que topa roubar a fábrica de baralhos onde costumava trabalhar, recebe a notícia da morte da mulher. Pressionad­o por bandidos a seguir em frente, e com Batman nos seus calcanhare­s, ele cai em produtos químicos, ganha o visual que conhecemos e fica insano de vez.

No filme de Phillips, o Coringa se chama Arthur Fleck. É levado à insanidade por tragédias pessoais e pela crise econômica em Gotham, a cidade fictícia palco das aventuras de Batman. Após matar yuppies que ameaçavam uma mulher no metrô, vira símbolo dos oprimidos contra a elite predatória.

Sem ter ligação com outras produções do Universo DC nos cinemas, com tom mais realista e violento, “Coringa” permite a Phoenix desfilar seu talento na interpreta­ção mais perturbado­ra do vilão.

Enquanto o Coringa de Heath Ledger é a encarnação do caos, o de Phoenix é produto do mesmo caos. O primeiro desafia a sociedade, o segundo nasce por culpa dela. São du

O novo filme permite a Phoenix desfilar seu talento na interpreta­ção mais perturbado­ra do vilão. Enquanto o Coringa de Heath Ledger é a encarnação do caos, o de Phoenix é produto do mesmo caos. O primeiro desafia a sociedade, o segundo nasce por culpa dela. São duas visões opostas, entretanto brilhantes

as visões completame­nte opostas, entretanto brilhantes.

Por conta disso, “Coringa” levanta várias interpreta­ções. Uns alegam que o filme incentiva a revolta social. Outros o acusam de atuar como manual do movimento incel, abreviatur­a de “celibatári­os involuntár­ios”, homens raivosos que não conseguem se relacionar e culpam a sociedade e as mulheres por suas inadequaçõ­es.

“Quero que tudo fique mesmo em aberto”, declarou o diretor do filme. Nada mais apropriado ao próprio Coringa, que nas páginas de “A Piada Mortal” brinca sobre suas origens turvas. “Eu não tenho certeza absoluta. Algumas vezes, me lembro de um jeito. Outras vezes, de outro...”, conta o palhaço enquanto é perseguido pelo Batman.

“Se eu preciso ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha. AH AH HA!”

 ?? Divulgação ?? 3
1 Joaquin Phoenix em ‘Coringa’ (2019); 2 Heath Ledger em ‘Batman: O Cavaleiro das Trevas’ (2008); 3 Jack Nicholson em ‘Batman’ (1989), os principais intérprete­s de Coringa no cinema
Divulgação 3 1 Joaquin Phoenix em ‘Coringa’ (2019); 2 Heath Ledger em ‘Batman: O Cavaleiro das Trevas’ (2008); 3 Jack Nicholson em ‘Batman’ (1989), os principais intérprete­s de Coringa no cinema
 ??  ?? 1
1
 ??  ?? 2
2
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil