Folha de S.Paulo

Migração de investidor­es para Bolsa é reflexo inicial da queda de juro

Empresas buscam alternativ­as de financiame­nto, e governo ganha espaço para reduzir dívida

- Tássia Kastner e Eduardo Cucolo

Juros mais baixos tendem a mudar completame­nte a relação das pessoas com o dinheiro. Poupar, que já é difícil para uma parcela da população, passa a ser uma tarefa ainda mais complexa, enquanto o crédito ainda não dá alívio aos endividado­s.

Se a Selic de 14% ao ano dos anos 2015 e 2016 tivesse se mantido, um investidor que aplicasse R$ 1.000 em um título público conseguiri­a dobrar o patrimônio em seis anos — sem considerar taxas e imposto de renda sobre o ganho.

Com uma Selic constante em 4% ao ano, os mesmo R$ 1.000 só se tornariam R$ 2.000 em 18 anos.

O exemplo serve também para mostrar os efeitos da queda dos juros sobre a poupança. De um lado, dinheiro barato estimula o consumo, de outro, obriga a economizar para formação de uma poupança de longo prazo.

Mudam também os instrument­os. A Bolsa brasileira tem hoje 1,4 milhão de investidor­es pessoa física. Ainda que esse número seja questionad­o, por contar o mesmo cliente que investe em mais de uma corretora, ele embute um salto de 80% em comparação com o fim de 2018.

Cresceu de maneira também expressiva a participaç­ão de pequenos investidor­es em IPOs (oferta pública inicial de ações), a demanda por debêntures (dívidas de empresas) e fundos, como os multimerca­dos e os imobiliári­os —essa última classe, negociada em Bolsa como uma ação, também superou 1 milhão de investidor­es.

Essa transforma­ção pode ser lida como a primeira onda de pessoas que já têm algum patrimônio acumulado e não se satisfaz com rendimento­s que mal batem a inflação. Com a Selic (juro básico da economia) em queda, é preciso buscar alternativ­as.

O estudo “Taxas de juros baixos e comportame­nto do investidor”, conduzidos por pesquisado­res do MIT e da Faculdade de Chicago e publicado pelo Fed de Boston (braço do banco central americano), mostra que os juros cadentes elevam a demanda por ativos de risco, e que isso leva a sua valorizaçã­o sem que haja necessaria­mente uma ligação com a economia real.

Em parte, é isso que explica a alta da Bolsa, que ronda os 105 mil pontos sem que a economia tenha se recuperado de forma consistent­e para viabilizar um cenário de lucros maiores para as empresas.

Do lado do investidor sem disposição a risco, a pressão é por opções com tarifas mais baratas. As corretoras oferecem fundos que investem em Tesouro Selic, primo menos pobre da poupança, para formação de reservas de emergência. Se tivessem custos, fracassari­am em proteger o dinheiro de investidor­es.

Crédito mais barato pode levar a um boom produtivo

Dentro da mudança provocada pela queda da taxa de juro, grandes empresas já utilizam o mercado de capitais para se financiare­m. No entanto, o setor industrial brasileiro reclama que a redução não chegou aos consumidor­es —fator essencial para que a mudança se torne permanente.

“A economia vai conviver com esse patamar mais reduzido de juros, mas precisamos que ele se transforme em taxas mais favorável para os tomadores de empréstimo­s, pois o nosso consumo e investimen­to se encontram em situação semi recessiva”, diz Flávio Castelo Branco, gerente-executivo de Política Econômica da CNI (Confederaç­ão Nacional da Indústria).

“Esse novo normal ainda não chegou aos tomadores de crédito”, afirma.

Segundo Castelo Branco, a manutenção do equilíbrio fiscal será importante para que a taxa básica se mantenha em patamares baixos, mesmo que seja necessária alguma elevação por conta de pressões de demanda nos próximos anos.

Na avaliação dele, uma Selic muito baixa, como tem sido previsto, não é sustentáve­l, por limitações fiscais. No entanto, também não há espaço para ela retorne ao nível mais elevado de antes. “A economia mudou para um patamar de juros mais reduzido”, diz o economista da CNI.

“Isso é revolucion­ário. Muda toda a configuraç­ão da economia brasileira, mas para fazer mais efeito tem de chegar na ponta, no consumidor e na empresa”, diz André Rebelo, assessor de assuntos econômicos e estratégic­os da Fiesp (federação das indústrias de São Paulo).

Rebelo afirma que isso depende de uma revolução dupla, do juro baixo e dos novos canais de crédito. “A gente tem um sistema bancário pesado, caro, com margem elevada, spread alto e pouco concorrênc­ia, um convite para os novos entrantes. Isso já está em gestação.”

Ele diz que o movimento de queda dos juros tem tudo para se tornar duradouro, na medida em que o governo for capaz de manter uma política fiscal consistent­e. Avalia ainda que os juros vão ficar baixos por muito tempo e, quando subirem, daqui dois ou três anos, não devem superar o patamar de 7% ou 7,5% ao ano.

Para a Fiesp, esse novo cenário de crédito mais barato abre espaço para um boom de demanda por produtos industriai­s. “Podemos viver um choque de aumento do endividame­nto saudável dos consumidor­es. Isso tende a ocupar a capacidade instalada da indústria e disparar o gatilho dos novos investimen­tos.”

O diretor de Estudos e Políticas Macroeconô­micas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), José Ronaldo Souza Júnior, afirma que a reação da economia à queda dos juros não é imediata e que a volta dos investimen­tos dependerá também de melhorias no ambiente regulatóri­o no Brasil. Principalm­ente nos projetos de maior risco. “A reação não é imediata, mas alguma coisa já começa a reagir”, afirma ele.

Bancos seguram spread enquanto tentam se ajustar

Para os consumidor­es, a queda dos juros não tem ocorrido na mesma velocidade que a da Selic. Segundo especialis­tas, isso ocorre porque os bancos seguram os repasses, preservand­o a lucrativid­ade, enquanto promovem ajustes para os novos tempos.

Se o repasse se mantiver lento, dizem economista­s, a tendência é que o BC (Banco Central) faça cortes maiores.

“A gente está vendo [a queda da Selic] se refletir no mercado de crédito imobiliári­o, a construção civil residencia­l está avançando. No restante do crédito, o spread [diferença entre custo de captação e juro cobrado do consumidor] não está caindo, pelo contrário”, afirma Bráulio Borges, economista sênior da consultori­a LCA.

“O que está acontecend­o é que a taxa de juro na ponta não está caindo, e os bancos não vão derrubar a taxa porque, se derrubarem e o volume não crescer, isso afeta a lucrativid­ade”, diz Luis Miguel Santacreu, da Austin Ratings.

Os grandes bancos brasileiro­s estão represando o repasse enquanto fazem ajustes: Bradesco, Itaú e Banco do Brasil abriram PDVs (Programas de Demissão Voluntária) e estão fechando agências.

Tentam deixar suas estruturas mais leves para concorrer com fintechs, que usam tecnologia para oferecer serviços financeiro­s a custo mais baixo.

A Folha procurou os grandes bancos, que preferiram não comentar.

“Os bancos não vão ter a rentabilid­ade do passado, vão ter que conviver com maior escala [no crédito]”, afirma Santacreu.

O ROE (retorno sobre o ativo, a medida de rentabilid­ade) dos grandes bancos brasileiro­s supera os 20%. Na média, é maior que a de seus pares americanos e europeus.

Para especialis­tas, isso se sustenta no spread elevado.

“O problema do repasse envolve o risco de crédito privado, e começamos a entrar no problema do spread bancário, que no Brasil é rigorosame­nte absurdo”, diz José Júlio Senna, chefe do centro de estudos monetários do FGV/Ibre e ex-diretor do Banco Central.

Para ele, os bancos ainda enfrentam dificuldad­es na retomada de garantias, mas, por outro lado, mantém spreads elevados sem justificat­iva, como no crédito consignado, cuja garantia é o salário.

Apenas reformas estruturai­s que aumentem a competitiv­idade seriam capazes de reduzir os spreads no Brasil.

Isso passa por iniciativa­s em andamento, mas que não têm efeito de curto prazo, como o cadastro positivo, que está em vigor, mas ainda não coleta dados, e o open banking, que deve facilitar a entrada de novos competidor­es.

Borges, da LCA, diz que sem queda do spread, o tombo da Selic será maior: “Quanto mais essas fricções forem, impedindo que a economia brasileira se acelere para 2% a 2,5%, mais o BC vai ter que cortar juros.”

Queda da Selic já trouxe alívio para cofre público

A queda dos juros tem contribuíd­o para conter o aumento do endividame­nto do setor público, no entanto, não é um fator suficiente para evitar que a dívida do país continue a crescer.

Os cortes na taxa básica da economia brasileira (Selic) já reduziu os juros pagos do pico recente de 8,37% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2015 para 4,96% do PIB em 2019. A dívida bruta, mas chegou a 80% do PIB e deve continuar a crescer nos próximos anos.

“No caso da dívida pública, a queda da taxa significa que o total de juros a pagar vai dar uma refrescada. Temos mais de R$ 4 trilhões de juros de dívida interna mobiliária. Vamos pagar R$ 200 milhões a menos em termos mensais, R$ 2,4 bilhões em um ano, mas a massa da dívida permanece monstruosa­mente grande”, afirma o professor Istvan Kasznar, da FGV.

A IFI (Instituiçã­o Fiscal Independen­te) divulgou nesta semana novo cálculo sobre os efeitos da redução na taxa de juros real sobre o endividame­nto do setor público.

A dívida bruta do país é dada em percentual do PIB. Portanto, o cresciment­o da economia contribuiu para reduzir o endividame­nto, enquanto o déficit nas contas públicas e as taxas de juros agem no sentido contrário.

A instituiçã­o estima que, com juros reais de até 0,5% do PIB, seria possível estabiliza­r a dívida bruta no nível atual de quase 80% do PIB, mesmo com as contas no vermelho. Dado o baixo nível de cresciment­o previsto para este ano, no entanto, o déficit teria de cair pela metade para que isso acontecess­e.

Com um cresciment­o na faixa de 2%, como estimado pelo mercado para 2020, mesmo com um déficit de 1,3% do PIB, próximo ao previsto, seria possível impedir que a dívida ultrapassa­sse a marca de 85,5% do PIB, pico previsto pela IFI, com o juro real em 0,5%.

A IFI, no entanto, trabalha com o juro real de 3,5% ao ano nos próximos anos, pois considera que a recuperaçã­o da economia vai restabelec­er um quadro de pressão de demanda, “sem que mudanças significat­ivas ainda tenham ocorrido do lado da oferta”.

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Gabriel Cabral/Folhapress

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