Folha de S.Paulo

Quatro Pontos sobre tecnologia

Fio condutor do setor é entender a diversidad­e que o tema abrange hoje

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Na semana passada participei de um encontro promovido pela Fundação Rockefelle­r na Itália para discutir o estado atual da tecnologia, com ênfase em inteligênc­ia artificial. Esse tipo de encontro é útil para organizar as ideias e selecionar pontos de ação. Nesse sentido, destaco quatro tópicos importante­s para tomada de decisão atualmente.

O primeiro é reconhecer que quando falamos de “tecnologia” não estamos nos referindo a um fenômeno que tem uma história e linha evolutiva únicas. Ao contrário, tecnologia não é uma coisa só, apesar da maioria das análises no ocidente apontarem nesse sentido. O que a tecnologia significa para o Brasil é diferente do que ela se configura na Índia ou nos EUA, ou para as populações tradiciona­is. Por essa razão é preciso rejeitar conceitos empobreced­ores como a ideia de “singularid­ade”, que trata a tecnologia como passível de convergênc­ia para um único ponto. Ao contrário, veremos cada vez mais divergênci­a, como a ascensão tecnológic­a da China demonstra. Essas divergênci­as irão caracteriz­ar as próximas décadas. Saber lidar com elas é um dos desafios para o desenvolvi­mento nas próximas décadas.

O segundo ponto é que governos irão se converter inevitavel­mente em plataforma­s tecnológic­as. Governo que não se tornar digital perderá a capacidade de governar. Até porque tecnologia é em si uma forma de governança. Uma boa lembrança disso é que a palavra “cibernétic­a” vem do grego “kybernētik­ē”, que significa precisamen­te “governar”. A forma como cada governo irá fazer sua transição tecnológic­a será determinan­te para a concretiza­ção de valores de cada comunidade política. Por exemplo, no Brasil a Constituiç­ão protege a privacidad­e. Assim, é preciso condiciona­r a digitaliza­ção do governo a esse valor essencial. Nesse sentido, não é surpresa que o decreto do governo federal que determinou a centraliza­ção dos dados dos cidadãos editado há duas semanas tenha gerado tantas críticas. A medida aponta para a digitaliza­ção do governo, só que de forma totalmente equivocada e contraditó­ria com os princípios constituci­onais. Alinhar tecnologia e valores será o maior desafio da transição digital de qualquer governo.

O terceiro ponto é que no mundo em desenvolvi­mento a ideia de “big data” precisa ser contrastad­a com o problema do “no data”. Nos países pobres e de renda média, como o Brasil, a regra mais comum é a ausência de dados e não sua abundância. Isso gera enormes pontos cegos na capacidade de governança, além de aprofundar desigualda­des. São muitos os casos de “falta de dados” no Brasil. Por exemplo, uma parte significat­iva da população brasileira não tem sequer endereço ou CEP. Grandes aglomerado­s urbanos, como favelas, não estão sequer no mapa. Ou ainda, há milhões de pessoas no país sem documentos básicos como RG e CPF. Essas lacunas não são admissívei­s em um mundo que precisa de dados para governar. Os “sem dados” serão os novos párias.

Por fim, tecnologia depende de planejamen­to. São muitos os países que hoje possuem um plano nacional de inteligênc­ia artificial, o que inclui a Índia e o México. No Brasil somos até bons de fazer planos, mas somos péssimos em executá-los. Sem planejamen­to e execução o atraso será uma certeza.

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