Folha de S.Paulo

Crise com NBA esfria amor antigo da China por basquete

Esporte se popularizo­u no país após influência de religiosos e do exército

- Alana Ambrosio

são paulo Bastam alguns minutos no país mais populoso do mundo para notar a afinidade dele com o basquete.

Para chegar ao trem que sai do aeroporto de Pudong e leva até o centro de Xangai, maior cidade chinesa, os viajantes passam por um corredor bem iluminado, repleto de lojas e restaurant­es. Entre as imagens de comida, chama a atenção a de um estabeleci­mento pequeno.

No fim de agosto, às vésperas do Mundial de Basquete sediado pelo país, o jovem Kyle Kuzma, 24, atleta do Los Angeles Lakers, flutua com uma bola na mão em direção a um sanduíche de frango. Acima dele, o logo da NBA.

Um mês e meio depois, a cena banal ganha ar quase nostálgico. A China continenta­l está em conflito com a liga americana de basquete após o gerente-geral do Houston Rockets, Daryl Morey, apoiar protestos em Hong Kong com uma postagem no Twitter.

Ex-colônia britânica, a região passou ao controle chinês em 1997. Desde junho, as partes vivem escalada da tensão nas relações diplomátic­as.

A China, então, passou a ver com cautela tudo o que está relacionad­o à NBA. Neste mês, banners de nove metros de altura com jogadores populares da liga foram retirados das paredes de prédios.

Os jogos da pré-temporada disputados em Xangai entre Brooklyn Nets e Los Angeles Lakers tiveram transmissõ­es canceladas no país.

As incontávei­s quadras espalhadas da periferia aos bairros nobres em várias cidades chinesas continuam cheias, mas com menos alusões a LeBron James, Stephen Curry e James Harden.

A imensidão de chineses andando pelas ruas com camisetas dos astros americanos minguou à espera de um desfecho para o mal-estar gerado pelo tuíte. Antes disso, o desafio era perambular sem encontrar crianças, adolescent­es, adultos e idosos com a típica regata das equipes.

Para vários deles, mais graves do que as sete palavras do dirigente (“Lute pela Liberdade. Fique com Hong Kong”) foi o posicionam­ento de Adam Silver, comissário da liga, ao dizer que defende a liberdade de expressão do cartola do Rockets.

Para o jornalista chinês Luís Zhao, 40, que trabalha na mídia estatal, a questão da soberania territoria­l é muito sensível para os chineses.

“Especialme­nte para quem gosta do basquete, o sentimento é muito complicado. Não é só decepção, é tristeza. É como se quem você ama tivesse o ferido. Gostamos de ver o Houston Rockets e a NBA, mas acima de tudo sabemos que somos capazes de ver os jogos do conforto das nossas casas, com uma TV e um smartphone, porque o governo proveu”, afirmou.

Wang Anshu, 27, assiste à NBA há nove anos, mas pretende boicotar a liga nesta temporada. “Eles não podem pegar nosso dinheiro e desrespeit­ar nossa soberania”, disse ao The New York Times.

Do outro lado do conflito, o administra­dor Ricardo Lau, 37, que mora em Hong Kong, afirma que na região o futebol é mais popular e que a polêmica não tem sido tão alimentada. “A maioria dos fãs de basquete segue apoiando a liga nessa história”, afirmou.

A relação dos chineses com o esporte é bem mais antiga do que a NBA, fundada em 1946. No fim do século 19, poucos anos após a invenção do jogo em Massachuse­tts, nos EUA, missionári­os da associação de jovens cristãos YMCA levaram o esporte para a Ásia, sob a justificat­iva de que ajudaria no desenvolvi­mento físico da população.

Entre seus primeiros praticante­s estavam estudantes, soldados e membros do Partido Comunista. Nas décadas de 1930 e 1940, o Exército Vermelho, sob a liderança de Mao Tsé-Tung, tinha no esporte uma das únicas opções de lazer em meio a guerras.

A relação com a bola laranja se misturou à NBA em 1987, quando o então comissário da liga, David Stern, esperou mais de duas horas no hall da CCTV em Pequim, a emissora estatal da China (a mesma que agora barrou a exibição dos jogos), e ofereceu fitas de partidas para serem exibidas de graça, apostando em um expoente mercado.

Quinze anos depois, a dinastia do basquete se consolidar­ia, com a escolha do gigante pivô chinês Yao Ming (2,29 m) na primeira posição do draft (processo de seleção) de 2002. Justamente para fazer história no Rockets.

De lá para cá, a NBA ganhou na China um valor de mercado avaliado em mais de US$ 4 bilhões (R$ 16,5 bilhões).

Patrocinad­ores chineses já retiraram apoio ao Houston, e as transmissõ­es da temporada 2019/2020, com início nesta terça-feira (22), estão ameaçadas. O impacto pode ser sentido até no salário dos jogadores nos próximos anos, já que eles estão relacionad­os aos lucros da NBA.

Na última semana, Silver disse que o governo chinês pediu a demissão de Morey. Em resposta, a CCTV declarou que ele terá uma “retribuiçã­o” pelo comentário. Com a nova temporada batendo à porta, o futuro da NBA no país está indefinido. O certo é que a relação antes íntima vai demorar a ter de novo a paz de um casamento longevo.

 ?? 12.out.19 - AFP ?? Fãs aguardam passagem de jogadores do Lakers em Shenzhen, durante partida da pré-temporada da NBA
12.out.19 - AFP Fãs aguardam passagem de jogadores do Lakers em Shenzhen, durante partida da pré-temporada da NBA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil