Interior espanhol abriga maior acervo musical latino do mundo
Coleção Gladys Palmera é formada por fotos, fitas, CDs, livros, bibelôs e álbuns
O monastério de Felipe 2º, joia arquitetônica da Renascença espanhola, atrai turistas de toda parte a San Lorenzo de El Escorial —pequena cidade espanhola a meia hora de Madri. O que poucos sabem é que há outro tesouro encravado nas colinas da região.
Espalhado nos cômodos de uma requintada casa de campo, ele é formado por fotos, fitas, CDs, livros, bibelôs e álbuns vindos do outro lado do oceano. O apanhado alibabesco é a coleção Gladys Palmera, maior acervo de música latino-americana do mundo.
A casa abriga mais de 100 mil itens —metade deles são LPs. Os discos englobam o período que vai das gravações em goma-laca do início do século 20 aos bolachões dos anos 1970.
Uma prateleira que sobe até o pé direito guarda álbuns esquecidos da cantora cubana Freddy. Dentro de um arquivo deslizante, desses de biblioteca, repousam gravações de Tito Puentes, o rei do mambo. A primeira edição do clássico “A Tábua de Esmeralda”, de Jorge Ben Jor, também está lá.
“Esta é uma casa da música e não só uma coleção de discos”, diz José Arteaga, o cicerone de pesquisadores, músicos e aficionados que passam por ali.
De fato, para além dos álbuns, capas de disco e esculturas de jaguares ou cactos —a baixa umidade da região favorece a conservação dos vinis—, a casa hospeda uma rádio que leva o mesmo nome da coleção. A estação transmite pela internet parte do acervo, uma referência na divulgação da música latino-americana.
José é diretor da rádio e braço direito de sua fundadora, Alejandra Fierro. “Eu comecei a coleção sem saber, aos 18 anos”, lembra ela. “Passei seis meses no Panamá e meu primeiro disco foi ‘Metiendo Mano’, de Rubén Blades.” Entre as décadas de 1980 e 1990, Alejandra aumentou a coleção com CDs. Em 1999, estreou sua própria estação autofinanciada.
A coleção e a rádio hoje dão lugar de destaque à música afrocubana, ritmos caribenhos e jazz latino. Cantoras de gêneros clássicos da América Latina, como rumba, cumbia e bolero, também têm privilégio.
“As ‘latin divas’, como eu as chamo, sempre foram meu ponto fraco”, diz Alejandra. “Elas são mulheres de voz e caráter fortes, que impuseram seu estilo e deixaram uma marca na música.” Nessa lista entram, por exemplo, a mexicana Elvira Ríos e a brasileira Elizeth Cardoso.
Os discos brasileiros somam pouco menos de mil exemplares, mas a curadoria é refinada. “A música brasileira é latino-americana”, diz José. “Mas o Brasil é, para nós, um mundo à parte, um mundo que poderia crescer infinitamente.”
Algumas das pérolas catalogadas são a primeira edição de “Chega de Saudade”, de João Gilberto, lançada em 1959; o álbum de estreia de Hebe Camargo, “Sou Eu”, de 1960; “Fotografias!”, último do cantor Taiguara a ser lançado no Brasil, em 1973; e a versão original de “O Poeta do Povo”, de João do Vale, de 1965.
Boa parte do acervo de discos foi adquirida nos últimos dez anos em incursões realizadas por José e Alejandra por mais de 40 países e cidades, como Bogotá, Cali, Nova York e Miami. É um trabalho de arqueologia a que colecionadores estão acostumados. “É preciso criar uma rede de contatos”, sentencia José.
Hoje, a rede de amigos e mercadores online, junto de sites especializados como eBay e Discogs, substituiu as viagens para novas compras. O acervo agora se alimenta de peças certeiras, obras de determinados artistas e imagens específicas: há cerca de 4.000 fotos de músicos na coleção.
Qualidade e bons cuidados também são preocupações. “Uma vez adquirimos uma coleção de 10 mil discos em Nova York, que está no nível do mar”, lembra José. “Aqui, temos um clima mais seco, então compramos umidificadores para que os discos pudessem ‘respirar’ antes de serem abertos.”
Cerca de dez pessoas trabalham no acervo, entre aquisição, catalogação e programação da rádio. Na estação também toca música nova, do reggaeton mais pop a novas estrelas do jazz latino. Para o especialista da coleção, o continente vive um momento muito fértil na música, mas nem tudo é perene. “Já não se gravam discos como antes, o volume é menor”, lamenta José.
As obras de tempos idos da Gladys Palmera também vão, pouco a pouco, entrando no mundo do streaming. Digitalizar e disponibilizar todo o acervo pela internet é um dos objetivos a longo prazo. Nada que se compare à experiência de adentrar aquela casa no alto da colina e topar, na garagem, com a primeira prensagem de “Os Afro-sambas” de Baden Powell e Vinicius de Moraes.
“Quando se digitalizam essas cópias, podemos fazer outros projetos, como programas, playlists, muitas coisas”, diz José. “O mais bonito que pode acontecer a uma música é, como dizia García Márquez para os livros, que ela passe de mão em mão.”