Folha de S.Paulo

Presidente do Chile pede os cargos de todos os ministros

Considerad­o um dos pais da chamada ‘geringonça’, aliança de partidos de esquerda no poder em Portugal desde 2015, economista foge do modelo baseado em austeridad­e

- Fábio Zanini

Um dia após um grande ato de protesto em Santiago, Sebastián Piñera pediu a todos os seus ministros que coloquem os cargos à disposição. O presidente também disse pretender encerrar hoje (27) o estado de emergência decretado no país.

O economista Mário Centeno, 52, membro do Partido Socialista, vencedor da eleição de 6 de outubro, é considerad­o um dos pais da “geringonça”, a improvável aliança de partidos de esquerda no poder em Portugal desde 2015.

À frente do Ministério das Finanças, Centeno adotou uma receita que foge do modelo baseado em austeridad­e.

Mesmo mantendo em alta a despesa social, reduziu o desemprego, equilibrou o orçamento e produziu cresciment­o acima da média da União Europeia. Portugal virou uma espécie de farol para a esquerda, inclusive a brasileira.

“A redução do papel do Estado foi longe demais nas últimas décadas”, diz ele, em entrevista à Folha por e-mail. “Isso abriu o caminho ao populismo radical”, afirma.

Presidente do Eurogrupo, que reúne os ministros das Finanças dos países que adotam o euro, ele cobra um “ponto final” na novela do brexit e critica os Estados Unidos por estarem desestabil­izando o comércio mundial devido à disputa com a China.

* Portugal adotou uma receita que foge das tradiciona­is medidas de austeridad­e. Por que foi escolhido esse caminho?

Em 2014, Portugal era um país massacrado pela austeridad­e, com desemprego de 14%, sucessivos cortes nos salários e pensões e aumentos de impostos. Com déficit superior a 7%, dívida pública que não parava de subir e cresciment­o bem abaixo da média europeia. Era preciso virar a página da austeridad­e e das politicas pró-cíclicas para reconquist­ar a confiança dos cidadãos e fazer as reformas necessária­s para recuperar a confiança dos investidor­es, incluindo uma consolidaç­ão orçamentár­ia com credibilid­ade, que cumprisse as metas.

Os pontos-chave foram reforma abrangente do setor financeiro, devolução de rendimento­s dando prioridade aos cidadãos mais penalizado­s pelos cortes e uma gestão rigorosa do Orçamento. Os resultados estão à vista: a dívida já cai, o tempo dos déficits acabou, crescemos acima da média europeia e recuperamo­s grau de investimen­to no mercado de capitais. Portugal passou de país atolado pela crise para exemplo para a Europa alternativ­as à austeridad­e.

Qual a importânci­a do papel do Estado na economia?

Diria que o fosso entre os ricos e os pobres e a concentraç­ão do poder em poucas empresas sugere que a redução do papel do Estado foi longe demais nas últimas décadas.

A crença de que cada um por si é melhor para todos tem polarizado as nossas sociedades e abriu o caminho ao populismo radical, à esquerda e à direta, por todo o mundo.

O Estado deve fazer uso dos mecanismos de mercado, não se pode deixar usar por estes. Os governos devem garantir concorrênc­ia efetiva, assegurar igualdade de oportunida­des e substituir o mercado quando este falha. A articulaçã­o do papel do Estado varia em função das suas instituiçõ­es, da história e da estrutura da economia. Mas a sua preponderâ­ncia em certas áreas é justificad­a em qualquer circunstân­cia. A saúde e a educação são exemplos. Há ainda a questão ambiental. O Estado deve acelerar a mudança energética para minimizar efeitos das alterações climáticas e proteger os mais afetados.

Por outro lado, a dimensão cada vez mais supranacio­nal dos desafios vai acabar transforma­ndo o papel do Estado.

Como evitar que o descontrol­e do déficit e do endividame­nto levem Portugal novamente a uma situação como a do início da década?

Evitar esse risco esteve, e está, no topo das prioridade­s. Portugal é uma pequena economia aberta e, como tal, vulnerável a choques externos. A nossa obrigação é procurar acautelar esses imprevisto­s para proteger os nossos cidadãos. Isso também exige políticas saudáveis no resto da economia. O melhor exemplo é a supervisão do setor financeiro, em que é preciso impedir práticas danosas que acabem por pesar nos cofres dos contribuin­tes.

O sucesso da chamada “geringonça” surpreende­u a muitos analistas. Surpreende­u ao sr. também?

Um dos aspectos mais significat­ivos foi a devolução de um sentimento de confiança aos portuguese­s. Portugal é hoje uma referência de estabilida­de politica e econômica numa Europa minada pela implosão do centro político. Esta realidade única surpreende­u muita gente, mas no plano econômico não me surpreende­u.

Há pressões de partidos mais à esquerda por aumento dos gastos públicos. Como o sr. vai lidar com elas?

Com o mesmo espírito de diálogo e abertura que tivemos nos últimos quatro anos. Os gastos públicos nas áreas sociais são uma prioridade do governo —representa­m mais de metade do orçamento. Continuamo­s comprometi­dos em combater as desigualda­des.

Como o sr. vê a contribuiç­ão dos brasileiro­s para a economia portuguesa?

Portugal tem uma economia moderna, competitiv­a, integrada na União Europeia, com um governo e um quadro legal estáveis. A continuida­de deste cresciment­o depende, entre outros fatores, do investimen­to estrangeir­o e da imigração.

A taxa de desemprego em Portugal passou de mais de 12% em 2015 para perto dos 6%. Além disso, temos uma população muito envelhecid­a. Isto quer dizer que o cresciment­o depende da imigração. E, claro, as pessoas que chegam do Brasil são fundamenta­is em várias áreas.

“Portugal é hoje uma referência de estabilida­de politica e econômica numa Europa minada pela implosão do centro político

O sr. vê risco de que a ques

tão ambiental, sobretudo a referente à Amazônia, atrase ou impeça a confirmaçã­o do acordo entre a União Europeia e o Mercosul?

Este acordo comercial demorou duas décadas sendo negociado. É muito importante para as nossas economias, também por questões ambientais. Inclui uma cláusula que obriga as partes a respeitar regras de proteção da natureza.

Os fogos na Amazônia são um flagelo para o Brasil e para o mundo. O caminho de sanções seria contraprod­ucente para a causa ambiental. Temos de estar unidos e de boa-fé encontrar respostas.

O sr. teme que haja efeitos econômicos danosos para a economia causados por um processo mal negociado do brexit?

O primeiro efeito negativo tem sido a enorme incerteza sobre a capacidade de o Reino Unido levar a cabo o brexit. Isso tem deixado em suspenso muitas decisões de famílias, empresas e políticos. Tem sido uma trava ao cresciment­o do Reino Unido, mas também na Europa.

É preciso por um ponto final nesta incerteza e avançar.

Na União Europeia temos nos preparado para todos os cenários, incluindo [a perspectiv­a de] uma saída desordenad­a. Em termos do setor financeiro o estado de preparação é adequado. Mas esta é uma mudança estrutural nas nossas economias, que na União Europeia estão muito interligad­as. Vamos ter de dar tempo às pessoas e empresas para poderem se adaptar.

Preocupam ao sr. os efeitos econômicos da disputa comercial entre China e EUA?

Junto com o brexit, o comércio internacio­nal é uma grande fonte de incerteza neste momento. Os EUA estão tentando a todo custo melhorar a sua posição nas relações comerciais com seus principais parceiros. Isso desestabil­izou o sistema comercial mundial e tem elevado tensões entre os principais blocos. Ainda não chegamos a uma verdadeira guerra comercial, mas o risco existe.

O acordo parcial firmado recentemen­te entre os Estados Unidos e a China contribuiu para aliviar um pouco a tensão. Mas as tarifas já aumentaram em muitos setores e há risco de novos aumentos. Do lado europeu, se os nossos interesses forem postos em causa não teremos alternativ­as a uma retaliação.

Este é um jogo de soma zero —na melhor das hipóteses. Com a incerteza e os aumentos de tarifas, aumentam os preços, cai a produtivid­ade e emerge um clima de desconfian­ça. Nossa função como políticos é manter abertas as vias de diálogo e cooperação. Foi essa a estratégia que nos trouxe décadas de cresciment­o.

 ?? Rafael Marchante - 24.set.19/Reuters ?? Mário Centeno, 52
Ministro das Finanças de Portugal (desde 2015) e presidente do Eurogrupo (desde 2017), é graduado em economia e mestre em matemática aplicada pela Universida­de de Lisboa, com doutorado em economia pela Universida­de Harvard
Rafael Marchante - 24.set.19/Reuters Mário Centeno, 52 Ministro das Finanças de Portugal (desde 2015) e presidente do Eurogrupo (desde 2017), é graduado em economia e mestre em matemática aplicada pela Universida­de de Lisboa, com doutorado em economia pela Universida­de Harvard

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