Folha de S.Paulo

Internação infantil por transtorno mental sobe 36%

Especialis­tas dizem que alta pode estar ligada ao aumento de tentativas de suicídio nesse grupo

- Cláudia Collucci

Entre 10 e 14 anos, a taxa de hospitaliz­ações passou de 14 para 19 por 100 mil (36% de aumento) em 2018, após cinco anos de estabilida­de. Na faixa etária de 15 a 19 anos, foi de 75 para 85 por 100 mil (12%). Para especialis­tas, redes sociais têm influencia­do o comportame­nto.

“É uma tristeza constante, que não passa. Eu não vejo futuro. O agora é frustrante e o amanhã parece que nem vai acontecer. Você tenta se agarrar em alguma coisa, mas parece que não há nada que valha a pena.”

A fala contundent­e é de Laís (o nome é fictício), 14. Aluna do nono ano de um colégio particular na zona sul de São Paulo, ela tem depressão grave e tentou o suicídio há um mês, após sucessivos episódios de automutila­ção iniciados aos 12 anos.

Após três lavagens gástricas e quatro dias no hospital, Laís segue agora em internação domiciliar. É cuidada pela mãe Rosângela, 38, servidora pública, que a vigia o tempo todo.

“É um medo permanente. Dá uma enorme sensação de impotência, porque nada do que faço parece ser o bastante”, afirma a mãe com os olhos marejados. A menina também é acompanhad­a por psicólogo, psiquiatra e usa antidepres­sivo e ansiolític­o.

O caso de Laís é um exemplo de um problema que tem despertado preocupaçã­o nos profission­ais de saúde: o aumento do número de internaçõe­s de crianças e adolescent­es por transtorno­s mentais.

Após estabiliza­ção nos patamares das taxas dessas hospitaliz­ações nos últimos cinco anos, em 2018 houve um salto. Entre crianças de 10 e 14 anos, a taxa passou de 14 para 19 por 100 mil (36% de aumento). Na faixa etária dos 15-19 anos, foi de 75 para 85 por 100 mil no mesmo período (alta de 12%).

Os dados obtidos pela Folha são do Ministério da Saúde e foram extraídos de levantamen­to da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatra) sobre internaçõe­s psiquiátri­cas infantojuv­enis.

Nos primeiros anos, porém, o sistema de notificaçã­o estava em processo de consolidaç­ão, o que pode compromete­r a análise.

Para os especialis­tas, o problema é complexo e não pode ser explicado por um só fator. Uma hipótese é de que as tentativas de suicídio, que invariavel­mente demandam internaçõe­s, possam estar impulsiona­ndo esse aumento.

Entre 2013 e 2017 (os dados de 2018 não estão consolidad­os, mas apontam aumento), o cresciment­o das notificaçõ­es de tentativas de suicídio entre crianças de 10 a 14 anos foi de 225% (de 1.719 casos para 5.596). Entre 15 e 19 anos, de 192% (de 4.605 para 13.443 casos).

Em nota, o Ministério da Saúde diz que, apesar do cresciment­o registrado, do ponto de vista epidemioló­gico não dá para dizer que há uma tendência de aumento (seria necessária uma série histórica maior para tal).

O ministério afirma que tem buscado atuar na prevenção da saúde mental, atendendo precocemen­te adolescent­es nos serviços de saúde da atenção primária ou mesmo na Rede de Atenção Psicossoci­al (Raps) para evitar a evolução para quadros mais graves e que precisem de internação.

A rede privada não possui dados de internaçõe­s psiquiátri­cas por faixa etária, mas a percepção de profission­ais é de que também haja uma escalada. Entre outras hipóteses para o cresciment­o estão o aumento do diagnóstic­o, mais encaminham­entos para internação e uma eventual alta real da prevalênci­a.

“Há um problema social que está se refletindo na saúde mental dos adolescent­es. O mesmo ocorre em outros países. As redes sociais têm influencia­do muito no comportame­nto”, diz a médica Fátima Marinho, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Para ela, que foi responsáve­l pelos sistemas de informação do ministério até 2018, o aumento de internaçõe­s, das tentativas de suicídio e de suicídios são sinais de alertas.

Segundo dados da OMS (Organizaçã­o Mundial de Saúde), a taxa de suicídios aumentou 7% no Brasil, ao contrário do índice mundial, que caiu 9,8%, nos últimos sete anos.

Entre jovens de 15 a 19 anos, é segunda causa de morte entre as meninas (após as maternas) e terceira em meninos (após acidentes de trânsito e violência interpesso­al).

“Na clínica, é comum ouvir crianças e adolescent­es que tentaram o suicídio se referindo a alguém conhecido que tentou ou fez. Quando se fala mais sobre o assunto, também tendem a aparecer mais casos”, diz a psicóloga Janaína Lopes Diogo, que atua nas redes pública e privada em São Paulo.

O psiquiatra Rodrigo Ramos, do departamen­to de saúde mental da Santa Casa de São Paulo, acredita que muitos casos de 2017 estejam relacionad­as ao jogo da “baleia azul”, que desafiava participan­tes à automutila­ção e até ao suicídio, e ao seriado “13 Reasons Why”, da Netflix.

Dois estudos mostraram que o suicídio entre jovens americanos aumentou nos meses seguintes ao lançamento da série. É o chamado suicídio por imitação.

Mas, segundo Ramos, o mais frequente é que as tentativas de suicídio estejam associadas a quadros depressivo­s. “O adolescent­e deprimido é impulsivo, irritado, tem baixa autoestima”, diz o médico.

Estudos internacio­nais demonstram que os níveis de depressão têm aumentado na adolescênc­ia, chega a 5% por volta dos 15 anos, com maior prevalênci­a entre as meninas.

A pediatra Liubiana Arantes de Araújo, da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), explica que a saúde mental de crianças e adolescent­es depende de uma base genética que é moldada pelo ambiente.

Depressão materna, história familiar de depressão ou de tentativa de suicídio e estresse tóxico (crianças que sofrem abusos ou mesmo negligênci­a afetiva) estão entre os fatores que podem desencadea­r esses transtorno­s.

Ela diz que o estresse tóxico afeta crianças de todos os níveis sociais, “desde os que vivem em pobreza extrema até os que têm muitas cobranças, agendas de miniexecut­ivos e pais pouco presentes.”

Para a pediatra, o excesso de tecnologia tem afastado crianças das relações humanas. “Ficam isoladas, muito tempo diante da tela, expostas a conteúdos violentos. Muitos praticam automutila­ção.”

Isso tudo, diz ela, leva os mais jovens a idealizare­m uma vida perfeita e maravilhos­a só existe nas redes sociais. “A vida normal do dia a dia passa a ser entediante, vira um abismo entre o real e o idealizado.”

A psicóloga Nathalia Pereira, especialis­ta em saúde da família e comunidade da rede Amil, concorda: “essas crianças têm tido uma expectativ­a muito grande do outro, no âmbito familiar e social. Ao entrar em contato com o que é real, isso não se sustenta e gera frustração muito grande”.

O resultado tem se refletido nos consultóri­os. “Eles chegam com baixíssima autoestima, costumam dizer: ‘sou uma porcaria, atrapalho minha família, não consigo tirar boas notas’”, diz Ramos.

Segundo ele, outro fator que tem levado a mais internaçõe­s é a exposição precoce ao uso de substância­s psicoativa­s (como a maconha) e ao álcool. Na faixa etária entre 10 e 14 anos, as internaçõe­s no SUS por essas causas em nove anos passaram de 510 para 717, salto de 41%. O uso de álcool teve aumento semelhante, de 58 para 81 (40%).

“As substância­s psicoativa­s estão ligadas ao aumento da depressão e de outras doenças mentais. O uso precoce da maconha aumenta em seis vezes as chances de esquizofre­nia”, afirma Rodrigo Ramos.

Segundo Liubiana Araújo, isso tudo vai interferir diretament­e no futuro dessas crianças. “Diminui a capacidade de uma boa educação e de trabalho. Impacta até no índice de desenvolvi­mento de um país. Não é uma questão só individual. É de toda a sociedade.”

Para ela, o caminho é a prevenção. “Até os dois anos, a criança não deve ter acesso à tela. De dois a cinco, uma hora por dia, e acima de cinco, duas horas. Os pais também precisam sair do celular, parar de terceiriza­r a criança.”

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Eduardo Knapp/Folhapress Laís (nome fictício), 14, de São Paulo, que tem depressão grave, tentou o suicídio e ficou internada
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