Folha de S.Paulo

Raízes do autoritari­smo brasileiro

Coronelism­o moderno se dá em meio às redes sociais

- João Gualberto Vasconcell­os

Doutor em sociologia política pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e autor do livro ‘A Invenção do Coronel: ensaio sobre as raízes do imaginário político brasileiro’ (ed. Edufes)

Os grandes personagen­s que têm animado nossa vida política estão profundame­nte mergulhado­s em um imaginário social excludente, masculino e alicerçado na legitimaçã­o da desigualda­de. O mais paradigmát­ico desses personagen­s talvez seja o coronel.

Não seria exagero dizer que, mesmo nos dias atuais, o sistema político brasileiro foi capaz de aprofundar algumas das estruturas mais perversas do coronelism­o, a partir do personalis­mo e de padrões autoritári­os de comportame­nto gerados nesse longo processo histórico.

Afinal, a cultura brasileira ainda é rica nas caracterís­ticas gestadas em todo o nosso processo social e histórico, tendo o coronel como figura chave do mandonismo brasileiro e um ator central na estrutura do poder. Tão grande foi o seu papel na construção de nosso imaginário social que ele se transformo­u numa espécie de “mestre da significaç­ão”.

Como a instituiçã­o imaginária que gerou nosso processo político muito antes do advento da República, o coronel foi instituint­e do processo político brasileiro —ou seja, seus padrões de comportame­nto no poder moldaram nossas instituiçõ­es, abortando em muitos aspectos nosso processo democrátic­o.

Fomos, antes, marcados pelo nepotismo, compadrio, personalis­mo e outras caracterís­ticas ligadas a um mundo social que se instituiu pela força do poder e não pelas construçõe­s coletivas. Instituiçõ­es como a escravidão e o latifúndio têm forte papel nesse contexto.

O coronel é o personagem fundamenta­l da chamada Primeira República, mas cujos restos sobrevivem até hoje. Inclusive no mundo empresaria­l, onde ainda existem traços desse coronelism­o de viés autoritári­o. Esse é um motivo para que, em grande parte a gênese de nossa gerência dê as costas para padrões modernos de gestão de pessoas. Assim, o coronel é uma figura central, o mestre da significaç­ão no mundo que fomos capazes de construir e que nos habita até hoje.

Não é por acaso que ele está no epicentro de nosso dilema. De um lado, as instituiçõ­es que o coronelism­o gerou não são mais capazes de dar conta de uma sociedade moderna como a que temos. De outro, ainda estamos presos aos personalis­mos e as saídas autoritári­as.

No grande altar que construímo­s na política da ambiguidad­e que o coronel porta, colocamos o capitão Jair Bolsonaro no poder.

Moderno quando usa os meios de comunicaçã­o de massa digitais, mas arcaico quando o faz de forma personalis­ta e autoritári­a —e ainda mais focado na sua própria família, símbolo maior da sociedade tradiciona­l que queremos e precisamos vencer.

Decorre daí consideráv­el parte da inadequaçã­o de seu funcioname­nto nos dias atuais. Sua inexorável crise.

Nosso sistema centraliza­do de poder foi construído garantindo o controle das elites nas instituiçõ­es, inclusive as partidária­s.

Tudo passa pela compreensã­o mais generosa e atenta de importante­s caracterís­ticas da sociedade brasileira. Entre elas, a invenção do coronel e a manutenção das instituiçõ­es criadas a partir dele.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil