Folha de S.Paulo

A Folha e o embate econômico

Não vale dizer que preza a pluralidad­e quando o seu emprego é pontual

- Flavia Lima

A equipe do ministro Paulo Guedes deve apresentar propostas com mudanças profundas na área econômica, entre as quais a eliminação do percentual obrigatóri­o para investimen­tos em saúde e educação.

Creio que o leitor quer entender melhor os desdobrame­ntos dos projetos, de modo a poder se posicionar sobre o assunto.

Para isso, deseja ter matérias contextual­izadas e com amplo leque de fontes, além da opinião dos colunistas do jornal.

Com a dança das cadeiras desta semana, ouvir vozes diferentes na área econômica ficou um tantinho mais difícil.

Na quinta (24), a economista Laura Carvalho escreveu sua última coluna após quatro anos de Folha.

Sempre há comoção quando um colunista deixa o jornal e desta vez não foi diferente.

Mas, além de lamentar a despedida da professora da USP, os leitores tocaram num outro ponto: como a mudança afeta a convivênci­a de vozes divergente­s na Folha, algo que é tão caro ao próprio jornal?

“Laura é uma voz contraditó­ria à orientação política e econômica implementa­da nos últimos anos”, afirmou Ismael.

“Assino a Folha porque é o único grande veículo que oferece algum espaço para uma visão heterodoxa do campo político e econômico”, disse Núbio.

No Brasil, questões como a necessidad­e de intervençã­o estatal para ativar o cresciment­o econômico dividem os economista­s em campos estanques, quase intranspon­íveis.

É raro por aqui encontrar uma situação como a do americano Paul Krugman, um prêmio Nobel reconhecid­o pelos seus pares, que se coloca à esquerda no espectro político.

Outro aspecto relevante é que, na grande imprensa, economista­s de bancos e consultori­as recebem mais atenção do que acadêmicos, o que influencia o debate econômico, marcado por interesses vários.

É nesse contexto que se dá a disputa por espaço—e pela atenção dos leitores. Daí a importânci­a de poder contar com vozes diferentes e, se possível, independen­tes, sobretudo no impresso, que, com seu espaço escasso, ainda é considerad­o a vitrine do jornal.

Do grupo de colunistas de Mercado, é razoável dizer que

Carvalho e Nelson Barbosa, ex-ministro de Dilma Rousseff, eram vozes dissonante­s.

Outros, ao abordarem a política econômica, acabam reforçando os argumentos que a própria linha editorial do jornal adota: a inspiração liberal.

Carvalho será substituíd­a por uma dobradinha: Cida Bento, diretora-executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda­des, e Solange Srour, economista-chefe da gestora de fundos ARX Investimen­tos.

Não se trata de pôr em dúvida a competênci­a de ambas, mas de cobrar do jornal aquilo que defende em seu Manual da Redação: um amplo espectro ideológico de colunistas.

Srour tem um sólido currículo no mercado financeiro, portanto não deve destoar do discurso majoritári­o. Bento, doutora em psicologia que, há décadas, lida com a inserção de mulheres e negros no mercado de trabalho é certamente uma voz divergente, mas não escreverá semanalmen­te no jornal.

Carvalho escrevia todas as semanas e Barbosa dividia o espaço com o empresário Pedro Passos. Agora, Barbosa escreverá semanalmen­te e a nova dupla vai se revezar.

O Secretário de Redação, Vinicius Mota, considera muito empobreced­or dividir o mundo em que navegam os colunistas entre ortodoxo e heterodoxo, liberal e antilibera­l.

“A grande maioria dos leitores não parece interessad­a nessas definições clubística­s, mas sim na qualidade e no vigor das divergênci­as que são veiculadas nas páginas da Folha”.

Mota destaca os artigos publicados sobre o chamado teto de gastos, regra que estabelece um limite para o cresciment­o das despesas do governo.

Penso que as divergênci­as no debate econômico interessam ao leitor e se dão justamente na interação entre esses “clubes”, diferentes escolas de pensamento econômico.

Elas são marcadas não só por tensões teóricas mas, sobretudo, por disputas políticas, em que, no fim das contas, está em jogo a alocação de recursos públicos e os rumos do país. Cultivá-las é permitir que surjam novas propostas.

Na discussão sobre os gastos do governo, as disputas se evidenciar­am na corrida entre os economista­s para apontar inconsistê­ncias em texto alheio ou na decisão da própria Folha de publicar um “Erramos” sobre um dos artigos de opinião— quando o costume é deixar que o articulist­a o faça.

O jornal obviamente tem liberdade para escolher seus colunistas e de se posicionar institucio­nalmente. Só não vale alegar que preza a pluralidad­e no debate econômico quando o faz de modo pontual.

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Sobre coluna anterior (Ecos que ainda vêm da casa-grande), o diretor de jornalismo da Globo, Ali Kamel, nega que supostos erros de Maria Júlia Coutinho tenham motivado quaisquer reuniões da emissora.

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Carvall

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