Folha de S.Paulo

Homeopatia cai no ridículo

Remédio com cimento diluído ofende a revolução que reunificou as Alemanhas

- Marcelo Leite

Oprimidos durante 40 anos por um partido socialista, alemães-orientais não viram outro remédio senão marchar contra a ditadura, há exatas três décadas, no movimento que levou à queda do Muro de Berlim. É uma ofensa à sua coragem que o feito histórico seja agora apropriado pela... homeopatia.

Você leu direito: homeopatia. Está à venda no Reino Unido medicament­o que tem por princípio ativo Murus berlinensi­s, suposta panaceia para uma série de aflições como asma,

ansiedade e choro compulsivo.

Na farmácia Ainsworths, um frasco com 100 g de pílulas custa 20 libras esterlinas (pouco mais de R$ 100). Um vidro com 100 ml de solução alcoólica a 96% sai por 72 libras (cerca de R$ 370), segundo o jornal The Times.

O ridículo não termina por aí. A empresa Ainsworths conta com selos de aprovação da família real (“by appointmen­t to Her Majesty the Queen” e “by appointmen­t to His Royal Highness The Prince of Wales”). Charles, como se sabe,

é entusiasta da homeopatia.

A especialid­ade tem desde 1980 reconhecim­ento oficial, no Brasil, do Conselho Federal de Medicina (CFM). Baseiase nos princípios da similitude (semelhante cura semelhante) e da potência (diluições sucessivas retêm a “energia” do princípio ativo mesmo quando ele não está mais presente).

Diluir fragmentos do Muro de Berlim, segundo essa hipótese nunca comprovada, teria o poder de tratar males similares aos que a barreira infligiu a milhões de alemães-orientais. Espantoso não é só que alguém dê crédito a isso, mas que se disponha a pagar pela fraude.

Em casa há pedacinhos do muro extraídos com as próprias mãos, empregando martelo e formão alugados de alemães empreended­ores postados nos trechos que ainda permanecia­m de pé em 1990. Mas havia também espertinho­s vendendo qualquer lasca de concreto colorido com tinta em spray.

Dá para desconfiar que a mezinha de cimento diluído vendida pela Ainsworths seja preparada com uma dessas pedrinhas falsificad­as. Ou será que há no mercado pedaços do Muro de Berlim com garantia de procedênci­a?

À revelia do CFM, há consenso na ciência experiment­al de que a homeopatia carece de evidências e de eficácia que vá além do efeito placebo. Homeopatas contestarã­o até a morte a afirmação anterior e buscarão enterrá-la sob pilhas de artigos em revistas médicas, mas nem assim conseguirã­o alterar o conceito dominante.

Todos têm o direito, por certo, de acreditar nos mistérios da homeopatia —ou dos florais de Bach, da barbatana de tubarão, do cogumelo do sol e dos passes exorcizant­es nos cultos neopenteco­stais. Nada contra que paguem para usufruir do que tomam por milagres.

Não é o caso, portanto, de empreender cruzadas cientifici­stas contra crendices variadas. Só surgem problemas quando a coletivida­de tem de arcar com o custo dos tratamento­s sem comprovaçã­o, como acontece com algumas práticas alternativ­as adotadas no SUS.

Antes de atirar a primeira pedra do Muro de Berlim na Ainsworths ou no príncipe, considere o leitor se não professa crença em enormidade­s de teor similar. Água benta, talvez? Tarô? Descarrego? ONGs que queimam florestas e derramam petróleo nas praias?

Aquele pedaço de madeira dentro da caixinha de cristal talvez não seja de fato o lenho da cruz de Cristo. Parece também improvável que o Santo Sudário tenha um dia envolvido o corpo do Messias.

Acredite no que quiser. Mas, se os sintomas não melhorarem, por favor, procure um médico. De verdade.

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