Folha de S.Paulo

Protestos no Chile resgatam atuação política de jogadores

Grupos de organizada­s dos principais rivais têm se manifestad­o em conjunto

- Bruno Rodrigues

O fotógrafo Pedro Ugarte, da Agência FrancePres­se, registrou em um de seus cliques uma das imagens mais emblemátic­as dos protestos que convulsion­aram o Chile nos últimos dias.

Na imagem, um torcedor do Colo-Colo e outro da Universida­d de Chile, os principais rivais do futebol local e cujas torcidas possuem um vasto histórico de violência entre elas, ajudam um manifestan­te ferido, ambos carregando-o nos braços para longe da manifestaç­ão.

A foto de Ugarte ilustra de certa forma como tem sido a relação do futebol chileno com o levante popular no país, iniciado há quase uma semana com o anúncio do aumento da passagem de metrô em Santiago feito pelo governo do presidente Sebastián Piñera. Pauta já ampliada para outras questões sociais, como a Previdênci­a.

Torcedores da Garra Blanca e da Los de Abajo, principais organizada­s de Colo-Colo e Universida­d de Chile, respectiva­mente, também tomaram as ruas e têm se manifestad­o em conjunto, numa espécie de trégua entre os grupos.

As mensagens não têm vindo só de torcedores ou dos próprios clubes, que de maneira institucio­nal se posicionar­am “pelo diálogo pacífico e a manifestaç­ão responsáve­l”.

Figuras históricas da seleção, como o goleiro Claudio Bravo e o defensor Gary Medel, bicampeões da Copa América, e a goleira Christane Endler, titular da equipe nacional feminina que disputou a última Copa do Mundo, se manifestar­am nas redes sociais a favor da população e pela retirada do Exército das ruas, medida aplicada por Piñera para conter os protestos.

Bravo, Medel e Endler, contudo, atuam fora do país. No futebol nacional, menos glamouroso que o europeu, alguns atletas têm participad­o ativamente do processo.

É o caso de Nicolás Maturana, 26, meia-atacante da Universida­d de Concepción.

Escolhido como melhor do jogo no empate em 1 a 1 com o Antofagast­a, na última semana, pelo campeonato local, Maturana aproveitou o microfone do canal CDF para reclamar publicamen­te do governo de Piñera.

“Quero mandar um alô ao governo e oxalá que não cobrem dos pobres de todo o Chile esses aumentos. É um roubo para essa gente”, disse.

Presente nas ruas, Maturana se tornou um símbolo do envolvimen­to social de jogadores nos protestos populares. No Instagram, ele publicou fotos suas nas manifestaç­ões e a imagem de uma forma de alumínio amassada, utilizada nos panelaços.

“As pessoas se deram conta de que, se não saírem para a rua para protestar ou para cantar, fazer algo, os problemas nunca vão ser solucionad­os”, diz Maturana à Folha.

“De uma ou outra forma, os jogadores de futebol posicionar­am suas opiniões, e isso é bom diante de tudo o que o país está enfrentand­o. A maioria deles é gente de classe média ou de classe baixa e já sofreu com os abusos cometidos pelo o governo”, afirma.

Goleiro do Cobrela, José Quezada foi a um protesto na estação de metrô Laguna Sur, em Santiago. Atacante do

Everton de Viña del Mar, Isaac Díaz se juntou aos manifestan­tes em Concón, uma comuna de Valparaíso. Outros atletas do futebol local também foram às ruas do país.

Não é de hoje que jogadores chilenos se posicionam politicame­nte. O caso mais emblemátic­o dessa relação é o de Carlos Caszely, ídolo do Colo-Colo e da seleção.

Em 11 de setembro de 1973, um golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet derrubou do poder o socialista Salvador Allende (19081973), que se suicidou durante o ataque das forças armadas ao Palácio de La Moneda.

Caszely, simpático ao governo Allende, visitou com a seleção chilena a sede provisória do governo —a convite de Pinochet— antes de embarcarem para a Copa do Mundo de 1974, disputada na então Alemanha Ocidental.

Pinochet discursou e então passou para cumpriment­ar o elenco. Quando estendeu a mão a Caszely, recebeu de volta apenas um olhar, sem um cumpriment­o de volta, ato de rebeldia que lhe custaria a tortura de sua mãe pelo regime.

“Na ditadura, eu e Carlos Caszely fomos os únicos futebolist­as que nos manifestam­os publicamen­te contra o ditador. Nos amparamos no fato de sermos futebolist­as famosos, do time mais popular do Chile, que é o ColoColo. Então não podiam me levar preso, me torturar ou fazer com que eu desaparece­sse. O futebol é tão generoso que até quando a morte ronda ao seu redor, a bola o protege”, diz Leonardo Véliz, excompanhe­iro de Caszely no Colo-Colo e na seleção.

Autora do livro “Citizens and Sportsmen: Fútbol and Politics in Twentieth-Century Chile” (Cidadãos e Esportista­s: Futebol e Política no Chile do Século 20), a pesquisado­ra americana Brenda Elsey crê que o processo atual representa uma espécie de resgate do envolvimen­to político do atleta chileno, atrapalhad­o pela ocupação de cargos diretivos dos clubes por parte dos militares, que deixaram o poder apenas em 1990.

“Acredito que esta geração de jogadores foi influencia­da pelos movimentos estudantis dos anos 2000, mas também por uma longa tradição de movimentos da classe trabalhado­ra. Os protestos também têm sido vistos como apartidári­os, tornando o envolvimen­to mais fácil”, diz Elsey.

A rodada do Campeonato Chileno deste fim de semana foi suspensa pela federação local. Já a final da Libertador­es, marcada para 23 de novembro em Santiago, continua mantida pela Conmebol.

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