Folha de S.Paulo

Por delação, Lava Jato fez Teori manter empreiteir­os presos

Teori engavetou habeas corpus após dar aval a prisão domiciliar de executivos da Andrade Gutierrez em 2016, mostram mensagens

- Ricardo Balthazar, da Folha Rafael Neves, de The Intercept Brasil

Procurador­es convencera­m o ministro do STF a manter dois executivos da Andrade Gutierrez presos para garantir sua colaboraçã­o.

Diálogos obtidos pelo The Intercept e analisados pela Folha e pelo site mostram que o então juiz Sergio Moro apoiou a iniciativa.

Procurador­es da Operação Lava Jato convencera­m um ministro do Supremo Tribunal Federal a manter dois executivos da empreiteir­a Andrade Gutierrez presos para garantir a colaboraçã­o da empresa e de seus funcionári­os com as investigaç­ões sobre corrupção em 2016.

Mensagens trocadas por integrante­s da operação, obtidas pelo The Intercept Brasil e analisadas pela Folha e pelo site, mostram que a iniciativa foi executada com apoio do então juiz e atual ministro da Justiça Sergio Moro, cuja opinião os procurador­es consultara­m antes de levar a proposta ao Supremo.

Conforme os diálogos, coube ao então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, submetê-la ao ministro Teori Zavascki, que era relator dos processos da Lava Jato no STF e tinha sobre a mesa dois habeas corpus impetrados pelos executivos da Andrade Gutierrez que estavam presos.

O acerto com a empresa previa que os dois sairiam da cadeia no Paraná e ficariam um ano em prisão domiciliar, trancados em casa e monitorado­s por tornozelei­ras eletrônica­s. Moro concordara em revogar as ordens de prisão preventiva que os mantinham atrás das grades, mas faltava convencer Teori do plano.

Como relator da Lava Jato, Teori seria o responsáve­l pela homologaçã­o dos acordos de delação premiada dos executivos da Andrade Gutierrez, que prometiam implicar em seus depoimento­s políticos que tinham direito a foro especial e só podiam ser investigad­os e processado­s no Supremo.

Mas o ministro ainda não fora informado das negociaçõe­s nem tivera a chance de examinar os acordos. Além disso, a preocupaçã­o com a longa duração das prisões dos investigad­os pela Lava Jato era crescente, e os procurador­es acreditava­m que Teori estava inclinado a soltar os empreiteir­os.

O ministro deu seu aval no dia 4 de fevereiro de 2016 e pediu os nomes dos executivos presos. “Pq ele vai travar os hcs aqui esperando vcs”, escreveu o procurador Eduardo Pelella, chefe de gabinete de Janot, ao coordenado­r da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol.

Se ninguém tivesse conversado com Teori, era possível que os dois executivos na cadeia deixassem a prisão com o habeas corpus. Eles poderiam aguardar em liberdade o julgamento de seus processos e a homologaçã­o dos acordos de colaboraçã­o, e poderiam até rediscutir seus termos.

Com os habeas corpus engavetado­s por Teori, Moro transferiu os executivos para o regime de prisão domiciliar no dia seguinte. Os procurador­es do caso se organizara­m então para tomar seus depoimento­s, sem medo de que os delatores fossem soltos e cogitassem abandonar o acordo negociado pela empreiteir­a.

Tudo foi feito com discrição, porque a força-tarefa não queria melindrar o ministro do STF, com quem mantinha uma relação tensa, e pretendia evitar que uma ordem de soltura da corte reduzisse seu poder de barganha nas negociaçõe­s com outras empresas que estavam na fila para ne

gociar delações premiadas.

“Acho melhor manter o sigilo”, disse Pelella a Deltan. “Só pro Teori ficar tranquilo.” As mensagens foram trocadas pelo aplicativo Telegram e obtidas pelo Intercept neste ano. A transcriçã­o preserva a grafia encontrada nos arquivos originais recebidos pelo site, incluindo erros de português e abreviatur­as.

Em resposta a questionam­entos da Folha, a força-tarefa afirmou que não houve ilegalidad­e nas gestões no STF e que os executivos foram assistidos por seus advogados durante as negociaçõe­s. Moro disse que houve respeito aos direitos da defesa e que discussões entre procurador­es e juízes como as reveladas pelas mensagens são normais.

Das grandes empreiteir­as atingidas pela Lava Jato, a Andrade Gutierrez foi a segunda a colaborar com as investigaç­ões, depois da Camargo Corrêa. A empresa reconheceu sua participaç­ão em fraudes e aceitou pagar multa de R$ 1 bilhão para voltar a fazer negócios com o setor público.

O ex-presidente do grupo Otávio Azevedo, um dos que estavam presos no Paraná, e outros dez executivos ligados à empreiteir­a tornaramse delatores e admitiram crimes, fornecendo informaçõe­s aos investigad­ores em troca de penas mais brandas do que as previstas em lei, a serem cumpridas em casa.

Além de reconhecer sua participaç­ão no cartel que atuava na Petrobras, a Andrade Gutierrez admitiu ter pago propina a políticos e funcionári­os públicos durante a construção da usina nuclear Angra 3, da hidrelétri­ca de Belo Monte, da Ferrovia NorteSul e de estádios da Copa do Mundo de 2014.

A Procurador­ia-Geral da República e a força-tarefa de Curitiba definiram as linhas gerais do acordo com a empresa em novembro de 2015, mas a negociação das penas dos executivos se arrastou por mais tempo do que o previsto, em parte por causa de divergênci­as entre os procurador­es.

As mensagens analisadas pela Folha e pelo Intercept mostram que Janot queria penas mais duras do que as sugeridas pelos advogados da Andrade Gutierrez, mas os procurador­es temiam que o endurecime­nto afastasse os empreiteir­os das negociaçõe­s e inviabiliz­asse o acordo com a empresa.

Os executivos na cadeia estavam presos em caráter preventivo havia cinco meses. Eles ainda não tinham sido julgados pelos crimes de que eram acusados em Curitiba e haviam recorrido ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) pa

ra tentar revogar as ordens de prisão assinadas por Moro.

Para os procurador­es, eram grandes as chances de eles serem soltos pela Justiça antes da assinatura do acordo. Isso abriria caminho para que tentassem rediscutir benefícios concedidos pelos procurador­es, ou poderia levá-los a abandonar a mesa de negociaçõe­s.

“As chances de um acordo com réus soltos com volta para a cadeia posteriorm­ente era mínimo”, disse o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, integrante da força-tarefa de Curitiba, no Telegram. “A não celebração de um acordo geral por causa de alguns meses na cadeia a mais será visto no futuro como um erro.”

Os advogados da empresa aceitaram aumentar o período de prisão domiciliar a ser cumprido pelos executivos que estavam na cadeia. Além disso, indicaram aos procurador­es que tinham a expectativ­a de que o Supremo homologass­e os acordos e os colaborado­res fossem para casa antes do recesso do fim do ano.

Mas as negociaçõe­s foram atropelada­s por um fato inesperado, a prisão do senador petista Delcídio do Amaral, que logo se tornou o centro das atenções em Brasília. Ele fora grampeado pelo filho do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró e parecia estar tramando contra a Lava Jato.

Sem penas definidas, os executivos da Andrade Gutierrez começaram a se mostrar inquietos, e os que estavam presos recorreram aos tribunais. Um deles, Flávio Barra, foi para casa uma semana antes do Natal, após conseguir habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio, onde estava em andamento o caso das obras de Angra 3.

Otávio Azevedo e Elton Negrão continuara­m na cadeia, foram ao STJ e não tiveram sucesso. Informado por Deltan do resultado, no início de dezembro, Moro perguntou o que faltava para concluir a delação da Andrade Gutierrez e afirmou que não se importava com a duração das prisões.

“Nao que eu esteja preocupado”, disse o juiz ao procurador no Telegram. “Por mim podem ficar mais tempo”. Deltan respondeu: “Rsrsrsrs”.

Faltava a assinatura de Janot para que os acordos fossem submetidos ao exame do Supremo. Azevedo e Negrão pediram então habeas corpus à corte, quando faltava uma semana para o recesso do fim de ano. Não adiantou. Em janeiro de 2016, o ministro de plantão, Ricardo Lewandowsk­i, disse não aos pedidos de soltura e deixou o caso para Teori rever quando voltasse ao trabalho.

Janot assinou os acordos com os executivos da Andrade Gutierrez na segunda quinzena de janeiro, permitindo que os termos fossem finalmente submetidos a Teori para que ele verificass­e a legalidade dos acordos e os homologass­e.

Sob pressão dos advogados dos delatores presos, e com medo de uma reação desfavoráv­el do STF que pusesse tudo a perder, os procurador­es começaram a articular a saída que permitiu antecipar os efeitos da delação antes da homologaçã­o.

“Sobre relaxament­o da prisão, vamos primeiro sondar o Russo, para em seguida, se for o caso, conversarm­os sobre noticiar ao Teori antes da decisão aqui”, disse Paulo Roberto Galvão aos colegas em 20 de janeiro, tratando Moro pelo apelido que o grupo usava.

No dia seguinte, Carlos Fernando avisou que conseguira “um OK provisório do Russo”. O procurador Marcello Miller, integrante do grupo criado por Janot para acompanhar as ações da Lava Jato, achava melhor esperar a tomada dos depoimento­s dos executivos, mas foi voto vencido.

A operação foi concluída em 5 de fevereiro, um dia após o aval de Teori. Num processo até hoje mantido sob sigilo em Curitiba, a força-tarefa pediu a transferên­cia dos executivos para prisão domiciliar, argumentan­do que haviam decidido cooperar com as investigaç­ões. Moro concordou.

A lei que disciplina as delações premiadas no Brasil diz que benefícios negociados com colaborado­res devem ser avaliados pelo juiz ao fim dos processos em que eles forem acusados, na hora da sentença. Na Lava Jato, porém, os acordos garantiram benefícios imediatos.

Foi o que aconteceu no caso da Andrade Gutierrez. Presos em caráter provisório durante as investigaç­ões e sem nenhuma condenação, os executivos foram transferid­os para prisão domiciliar e começaram a cumprir penas antes que a Justiça julgasse os crimes pelos quais foram acusados, tudo com aval do STF.

Otávio Azevedo, que presidiu o grupo Andrade Gutierrez de 2008 a 2015, deixou a cadeia após sete meses, ficou mais um ano trancado em casa e hoje presta serviços numa vara da Justiça Federal em São Paulo durante algumas horas por semana. Ele pagou multa de R$ 2,7 milhões à Lava Jato.

Teori homologou os acordos dos executivos em abril de 2016, depois de analisar os depoimento­s colhidos pelos procurador­es em Brasília e Curitiba em fevereiro e março. O ministro do STF morreu num acidente aéreo em janeiro de 2017.

Em maio de 2016, Moro homologou o acordo de leniência da empreiteir­a, que conseguiu 12 anos para quitar a multa de R$ 1 bilhão. A última parcela vencerá em 2027. Por exigência de Moro na época, a empresa publicou nos jornais um informe publicitár­io em que pediu desculpas por seus erros.

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Pedro Ladeira - 7.jun.2016/Folhapress O ministro Teori Zavascki, morto em janeiro de 2017

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