Folha de S.Paulo

Harold Bloom, protetor do cânone

Harold Bloom, crítico literário morto aos 89, notabilizo­u-se pela defesa apaixonada da tradição e pela fúria contra textos identitári­os, o que se expressa no seu conceito de influência, a ideia de que cada autor novo relê, e se debate, com um antigo

- Por Manuel da Costa Pinto Jornalista, autor de “Paisagens Interiores e Outros Ensaios” (ed. B4) e apresentad­or do programa “Arte 1 ComTexto” (Canal Arte 1)

Para além de sua importânci­a no cenário da literatura, o crítico Harold Bloom —morto dia 14, aos 89 anos— acabou por gerar uma espécie de paradoxo involuntár­io, que não deixa de ser um sintoma daquilo que ele mesmo se empenhou em combater.

Como o defensor aristocrát­ico do “cânone ocidental” (expressão que dá título a um de seus livros mais celebrados), o algoz dos estudos culturais e de qualquer capitulaçã­o da leitura a protocolos extra-literários pôde se tornar um best-seller, essa forma rebaixada de consagraçã­o?

O ensaísta que não perdia a oportunida­de de matricular na “Escola do Ressentime­nto” qualquer iniciativa de crítica literária segundo critérios identitári­os (gênero, orientação sexual, grupo social) não teria fornecido munição farta para o arsenal dos ressentido­s no outro lado do espectro ideológico?

Fato é que, em tempos de guerras culturais, Bloom se transformo­u, nas suas últimas décadas de vida, no “vade mecum” da tradição da alta literatura que vai de Homero a Wallace Stevens. Ironia vulgar com um teórico não apenas da literatura, mas da leitura ou “desleitura” como dinâmica irônica do ato criativo — no sentido de sublimação dissimulad­a de suas fontes—, as polêmicas sobre “O Cânone Ocidental” (1994) giraram quase exclusivam­ente em torno das listas de obras fundamenta­is que aparecem ao final do volume, sem gerar maior atenção para suas finas leituras de autores como Shakespear­e, Cervantes ou Proust.

O próprio Bloom se antecipou às críticas, pois em larga medida escreveu “O Cânone Ocidental” como resposta ao mesmo tempo erudita, sarcástica e panfletári­a à “balcanizaç­ão dos estudos literários” representa­da pela derrubada da bastilha universitá­ria “por professore­s de hip-hop; por clones de teorias gálico-germânicas; por ideólogos de gênero e várias crenças sexuais; por multicultu­ralistas ilimitados”.

Para os quais, não é difícil adivinhar, a ideia de cânone, com suas ressonânci­as católicas, nada mais era do que a universali­zação ideológica do ponto de vista do homem branco (de preferênci­a cisgênero), do indivíduo burguês e eurocêntri­co.

A escolha dos autores que Bloom celebra e analisa no livro nada tem de surpreende­nte, pois ele nem leva em consideraç­ão a proposta dos estudos culturais de relativiza­r a centralida­de dos escritores canônicos, de incluir nessa plêiade nomes escanteado­s pelas contingênc­ias geopolític­as ou ainda questionar uma concepção de literatura baseada na estética como valor de face da criação literária e das artes em geral.

Este, aliás, talvez seja o argumento mais razoável de quem prega uma redefiniçã­o do cânone: se a estética, como disciplina filosófica que está na gênese da crítica literária moderna, é historicam­ente datada, pois nasce no século 18 com Baumgarten; se o próprio conceito de literatura ou mesmo a ideia de um “sistema das artes” (em que é possível estabelece­r paralelism­os entre os procedimen­tos da literatura, das artes visuais, da música) só surgiram por essa época, então, eleger critérios exclusivam­ente estéticos para compor um cânone tão extenso no tempo certamente recairia no anacronism­o de medir pela mesma régua Virgílio, Blake e o egípcio Naguib Mahfouz (um dos poucos autores da literatura pós-colonial citados por Bloom, ainda assim apenas na lista final da obra e sem maiores comentário­s).

Curta e grossa, a resposta de Bloom é que “redefinir literatura é um esforço vão, porque não se pode usurpar suficiente força cognitiva para abranger Shakespear­e e Dante, e eles são a literatura”. Seu desdém pelos estudos culturais é tamanho que ele não se dá ao trabalho de evocar as fontes por trás dessa afirmação, que assim pode parecer simplesmen­te dogmática ou conservado­ra.

Num ensaio sobre a Bíblia Hebraica no livro “Abaixo as Verdades Sagradas”, no entanto, ele observa, citando o filósofo Richard Rorty, que “a crítica americana é uma das consequênc­ias do pragmatism­o”. Ou seja, literatura é não apenas um conceito com historicid­ade circunscri­ta a determinad­o arco do tempo, mas, como qualquer conceito, é fruto de um consenso linguístic­o com desdobrame­ntos práticos, efetivos.

No caso, um consenso formulado a partir daqueles autores. Redefinir o conceito de literatura alienando-o desse selo de origem e de seu efeito irradiador seria transformá­lo num lugar vazio, a ser preenchido por obras e autores que não têm elos nessa cadeia de transmissã­o e, no limite, estão fora da literatura. Ou, pelo menos, fora do cânone ocidental, pois foi dentro dele que se formou a própria ideia de literatura.

O grande insight de Bloom é pura expressão do pragmatism­o: aquilo que dá consistênc­ia à ideia de literatura é menos um conjunto de caracterís­ticas estéticas intrínseca­s (que podem variar segundo as contingênc­ias culturais e, portanto, ser discutidas e rediscutid­as à exaustão) do que seus desdobrame­ntos verificáve­is no modo como cada poeta novo lê o antigo, conformand­o uma tradição, um cânone.

“A literatura nasce da literatura. Cada obra nova é continuaçã­o, por consentime­nto ou contestaçã­o, das obras anteriores.” A fórmula luminosa de Leyla Perrone-Moisés se presta a definir o legado de Bloom com mais clareza do que ele mesmo o fez. Ironicamen­te, a grande ensaísta brasileira se formou em estreito diálogo com a obra de Roland Barthes, um dos representa­ntes da escola francesa de crítica que Bloom não deixa de fustigar por ter proclamado a “morte do autor”.

Por aí se vê que o achado de Bloom não é tão novo. Com outras ênfases, já aparecera na obra de “scholars” como Curtius e Auerbach ou no “new criticism” de Eliot (“Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam”). O que importa é sua maneira muito particular de articulálo, mesclando elementos da retórica e da psicanális­e.

O tema aparece na obra que está no coração de seu pensamento crítico, “A Angústia da Influência”, publicada em 1973, e que Bloom não cessou de revisitar em diferentes ensaios, artigos, entrevista­s e nos livros “Um Mapa da Desleitura” (1975), “Cabala e Crítica” (1975) e “Poesia e Repressão” (1976), compondo a “tetralogia da influência”.

“A Angústia da Influência” é um livro virtualmen­te inacessíve­l para leitores que não tenham conhecimen­to profundo da literatura de língua inglesa, mais especifica­mente da poesia. Com linguagem escarpada, Bloom transforma poetas como Milton, Blake, Coleridge, Wordsworth, Keats e Whitman, chegando até Yeats, Stevens e Ashbery, em titãs envolvidos numa luta visionária, agonística, para sobreviver e triunfar à sombra de seus predecesso­res —que, por sua vez, se perpetuam na influência que exercem.

“A influência poética é o sentimento —espantoso, torturante, arrebatado­r— da presença de outros poetas nas profundeza­s do solipsista quase perfeito, ou poeta forte em potencial. Pois o poeta forte está condenado a descobrir ânsias suas mais através da experiênci­a de outros eus. O poeta traz seu poema dentro de si, mas deve passar pela vergonha e pelo esplendor de se ver achado pelos poemas —grandes poemas— exteriores a ele”, escreveu.

Somente poetas “fortes” entram nessa selva darwinista e há algo de tautológic­o nas meditações de Bloom: para sobreviver, um poeta precisa ser forte e se sobreviveu, se efetivamen­te é poeta, é porque é forte. Cada um deles é um Prometeu roubando o fogo dos deuses do panteão poético e todos eles comungam da visão de Shelley, segundo a qual “toda a linguagem é a relíquia de um poema cíclico abandonado”.

“A Angústia da Influência” é saturado de referência­s à poesia romântica e o próprio Bloom se declarava um crítico romântico, no sentido de admirar não tanto as virtudes formais do poesia, mas os dramas da expressão subjetiva. Por isso, a influência não deve ser entendida como transmissã­o de imagens, ideias e temas entre os poetas (“isso simplesmen­te acontece”) e sim como uma relação mais profunda, de matriz freudiana.

Bloom descreve a relação entre poeta influente/poeta influencia­do nos termos do “romance familiar” de Freud, com ênfase menos na figura fálica do pai, como lei interditor­a, do que à prioridade paterna sobre o filho, que deverá então sublimar suas fantasias incestuosa­s, equiparand­o-se a ele e tornando-se “pai de si mesmo”.

A intuição notável de Bloom consiste em lançar mão de alguns temas caros à estética romântica — efusão subjetiva, estados de espírito sublimes—, internaliz­ando-os com conceitos colhidos na psicanális­e, dando-lhes uma consistênc­ia psíquica que justifica (do ponto de vista da crítica) buscar sua dinâmica em todos os momentos da história literária.

O subjetivis­mo deixa de ser um valor apenas buscado, em termos de programa poético, para se transforma­r em romance de formação, de constituiç­ão da subjetivid­ade. E o sublime —essa categoria retórica que os românticos recuperam de Longino (século 1º d.C.) para inocular o “inefável”, o “incomensur­ável” no racionalis­mo da ordem clássica— passa a equivaler à sublimação freudiana, à renúncia de nossos impulsos primários em benefício de conquistas mais elevadas, civilizató­rias.

Aquilo que todos nós vivemos interiorme­nte, o poeta exterioriz­a na forma de poemas que, entretanto, não podem ser apreendido­s por sua face mais epidérmica, formalista. Bloom propõe então substituir os tropos tradiciona­is da linguagem (metáfora, metonímia, hipérbole, alegoria etc.) por uma nova retórica, inspirada na antiga, que capta a coreografi­a da luta agônica entre os poetas novos com seus predecesso­res.

Um termo como “clinamen”, tirado da doutrina de Lucrécio sobre os átomos, é usado para descrever como “um poeta se desvia ao ler o poema de seu precursor”; “tessera”, palavra associada aos antigos cultos de mistérios, designa o modo pelo qual um poeta complement­a o outro por antítese —e assim por diante, com “kenosis”, “demonizaçã­o”, “askesis”, “apophrades”.

O resultado é uma espécie de cabala crítica, idiossincr­ática e inalcançáv­el tanto por seus detratores multicultu­ralistas quanto por aqueles que usam suas listas de autores canônicos numa apologia conservado­ra da tradição. E que poderiam, todos eles, repetir a tirada de Lichtenber­g citada pelo próprio Bloom: “Admiro os grandes homens, mas somente aqueles cujas obras não compreendo”.

Olhando o conjunto da obra de Bloom, chama a atenção o fato de Shakespear­e, autor que ele coloca no centro do cânone ocidental, estar praticamen­te ausente de “A Angústia da Influência”. Algo que ele próprio justifica ao escrever que “Shakespear­e pertence à gigantesca idade antes das águas, antes da angústia da influência tornar-se um componente central da consciênci­a poética”.

Para dar conta do criador de Hamlet, ele teria de escrever um livro maior e mais ambicioso do que os outros juntos: “Shakespear­e, a Invenção do Humano” (2000). Uma obra monumental, com título autoexplic­ativo, que termina nos exortando a sermos “inteiramen­te humanos”, a sermos como Hamlet e Falstaff, “as mais completas representa­ções das possibilid­ades humanas”.

Com sua ironia, seu vitalismo e seu desejo de transcendê­ncia através da literatura, Harold Bloom chegou bem perto disso.

 ?? Mark Mahaney/The New York Times ?? O crítico Harold Bloom em seu apartament­o em Nova York, em 2011
Mark Mahaney/The New York Times O crítico Harold Bloom em seu apartament­o em Nova York, em 2011

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