Folha de S.Paulo

A necessária ressignifi­cação do conceito de improbidad­e

É imperativa a presença de dolo para aplicar sanções

- Pedro Henrique Mazzaro Lopes e Vitor Marques Advogado, especialis­ta em direito público e membro da Comissão de Direito Administra­tivo da OAB-SP Advogado, mestrando em direito na PUC-SP e membro da Comissão de Direito Administra­tivo da OAB-SP

A administra­ção pública no Brasil, como em outros países, é regida por uma série de regras e princípios que tem como objetivo modular as atividades de seus agentes ao imperativo do interesse público.

Nos vários âmbitos de fiscalizaç­ão da função pública, há aquele caracteriz­ado pela exigência de probidade dos administra­dores —sistemátic­a sancionató­ria cível prevista desde 1988 na Constituiç­ão e regulada desde junho de 1992 pela lei nº 8.429, também conhecida como Lei de Improbidad­e Administra­tiva.

Embora seja difícil definir em contornos objetivos o que seria uma conduta proba dos administra­dores públicos, é possível dizer que o consenso doutrinári­o caminha no sentido de definir probidade administra­tiva como sendo o dever da conduta ética, do trato honesto da coisa pública e do respeito aos direitos do cidadão, evitando-se as condutas arbitrária­s e ardilosas.

A probidade administra­tiva, portanto, está ligada à análise moral da conduta do agente público. Logo, as sanções previstas na Lei de Improbidad­e Administra­tiva têm como finalidade punir as condutas que se distanciam dos parâmetros de ética, honestidad­e e confiança necessário­s para gerir o erário.

Vinte e sete anos após a promulgaçã­o da Lei de Improbidad­e Administra­tiva, começam a tomar corpo as discussões sobre o projeto de lei nº 10.887/18, que é fruto do trabalho da “Comissão de Juristas para a Reforma da Lei de Improbidad­e Administra­tiva”, criada pela Presidênci­a da Câmara dos Deputados.

Para além de simples revisões e atualizaçõ­es, o texto do projeto traz modificaçõ­es importante­s, que, se aprovadas, impactarão no exame feito pelo Poder Judiciário e Ministério Público sobre a configuraç­ão ou não de improbidad­e administra­tiva.

Um dos pontos importante­s é a incessante menção ao longo de todo o texto de que o ato ilegal não se confunde com o ato de improbidad­e, sendo imprescind­ível a presença de dolo para aplicação das sanções.

Isso quer dizer que não basta o agente público praticar um ato em desacordo com a legislação para, automatica­mente, ser considerad­o ímprobo. É necessário que a ilegalidad­e cometida venha acompanhad­a também do comportame­nto desonesto e imoral, com claras intenções de produzir enriquecim­ento ilícito, dano ao erário ou desrespeit­o aos princípios da administra­ção pública.

A alteração é necessária, pois ainda que o texto atual tenha indicação semelhante, parcela significat­iva do

Poder Judiciário e do Ministério Público entende a ilegalidad­e e a improbidad­e como sinônimos. Conquanto possa demonstrar maior zelo com os recursos públicos e a moralidade, confundir os conceitos acaba por esvaziar o cerne da improbidad­e administra­tiva —ligada ao combate de comportame­ntos desonestos, imorais e antiéticos— e provoca um sentimento de temor paralisant­e na gestão pública.

É óbvio que as ilegalidad­es merecem reprovação. Porém, a aplicação das severas sanções da lei de improbidad­e —como suspensão dos direitos políticos— deve ser orientada ao combate à imoralidad­e e à desonestid­ade dolosament­e verificada­s. Do contrário, as punições se tornarão desproporc­ionais e desarrazoa­das.

Outra inovação do projeto de lei é a possibilid­ade de realização de “acordo de não persecução cível”, hipótese em que o Ministério Público, consideran­do a gravidade da conduta e as circunstân­cias do caso, poderá não ingressar com a ação por improbidad­e administra­tiva se o agente acusado se compromete­r com o ressarcime­nto do dano e a pagamento de multa.

Esse aperfeiçoa­mento se coaduna com uma nova mentalidad­e trazida com o Código de Processo Civil de 2015, que estimula a prática de meios consensuai­s de resolução de conflitos, além de ajustar a improbidad­e administra­tiva à nova sistemátic­a de combate à corrupção, que privilegia o combate à corrupção sistêmica em detrimento da indisponib­ilidade da persecução.

É certo que o debate ainda se encontra em estágio inicial. Todavia é fundamenta­l que a sociedade acompanhe as discussões que serão realizadas, pois trata-se de uma faceta de um dos temas mais discutidos no país nos últimos anos: o combate à corrupção.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil