A revolta chilena
É hora de perguntar se a desigualdade não é um limite para políticas pró-mercado
A onda de protestos no Chile foi uma surpresa. O país teve um desempenho econômico muito melhor do que o do resto do continente nas últimas décadas. É o país latinoamericano com o sistema político mais parecido com o de democracias maduras. A disputa política chilena se dá entre um partido de centro-esquerda e um de centro-direita que disputam o centro.
Mas talvez o exemplo do Chile seja importante justamente porque ele ia bem, comparado aos outros países latinoamericanos. Em outros lugares há complicadores locais muito graves, como as acusações de fraude eleitoral na Bolívia ou os escândalos da Odebrecht no Peru. Mas se até no Chile a crise chegou, talvez haja algo de errado com o modelo latino-americano.
O debate sobre “o que é específico no modelo latino-americano” é muito curto. Procure os rankings internacionais de qualquer coisa —riqueza, educação, saúde, meio ambiente etc.— e é muito claro em que a América Latina é muito diferente do mundo: somos a região mais desigual do planeta.
Veja o caso do Chile. Segundo o economista sérvio Branko Milanovic, um dos grandes especialistas mundiais em desigualdade, os 5% mais ricos do Chile têm renda semelhante aos 5% mais ricos da Alemanha, enquanto os 5% mais pobres têm a renda dos 5% mais pobres da Mongólia. Em 2014, a soma das fortunas dos 12 bilionários chilenos era, segundo cálculos da revista Forbes, equivalente a 25% do PIB chileno, uma proporção ainda maior do que na Rússia dos oligarcas. Milanovic afirma que a desigualdade chilena chega a ser maior do que “a proverbial alta desigualdade brasileira”.
Na verdade, depende da medida de desigualdade utilizada: o coeficiente de Gini dos dois países é altíssimo, mas o do Brasil é maior (51,5 contra 50,5, segundo o Relatório de Desenvolvimento da ONU de 2016). E, sim, é uma vergonha que tantos textos sobre desigualdade citem o Brasil como exemplo extremo.
Várias análises do caso chileno enfatizam o quanto reformas como a desastrada capitalização da previdência devem ter criado precarização e despertado revolta, e há muita verdade nisso.
Mas também é hora de nos perguntarmos se a desigualdade não é também um limite objetivo para a aplicação de políticas pró-mercado. Reformas sempre podem aumentar a desigualdade, e já começar com um nível muito perto do intolerável é difícil.
Reformas podem ser mais fáceis partindo de baixa desigualdade. Se a adoção dos vouchers escolares na Suécia (eventualmente revertida) tivesse aumentado a desigualdade, ela provavelmente continuaria em níveis razoáveis. É sempre bom lembrar: o público britânico só aceitou o thatcherismo depois de décadas de políticas igualitárias do pósguerra. A Estônia, laboratório de várias experiências econômicas liberais, começou como república soviética.
Além disso, com alta desigualdade, o crescimento reduz a pobreza mais devagar. Se você é um político querendo votos dos pobres, a tentação de fazer uma barbeiragem para acelerar o crescimento pode ser maior.
Portanto, se você é um Chicago boy na América Latina, a tarefa é clara. Pegue essa bandeira vermelha e corra lá para baixar esse Gini, ou nunca vão deixar você fazer seu trabalho.
PS: amigos chilenos, um conselho: preservem os partidos que vocês têm. Vejam onde nós aqui fomos parar sem eles.