Folha de S.Paulo

Concessão é vista por atletas como ameaça a ‘berço olímpico’ do Ibirapuera

Secretário estadual de esportes afirma que governo proverá condições de treino aos esportista­s

- João Gabriel

são paulo O processo de concessão do complexo do Ibirapuera virou tema de debates entre atletas e o governo do estado de São Paulo.

A iniciativa da gestão João Doria (PSDB) foi aprovada em junho na Alesp (Assembleia Legislativ­a de São Paulo) e prevê a instalação de uma nova arena multiúso para realização de eventos esportivos, culturais e religiosos no local. A expectativ­a é que o edital de concorrênc­ia seja publicado até abril do ano que vem.

O complexo abriga atualmente o Centro de Excelência Esportiva do estado, antes chamado de Projeto Futuro. Criado em 1984, dele surgiram medalhista­s olímpicos como Maurren Maggi (ouro no salto em distância), e os judocas Tiago Camilo (prata e bronze), Felipe Kitadai (bronze), Rafael Silva (dois bronzes) e Henrique Guimarães (bronze).

Atletas que hoje vivem e treinam no local mostram apreensão com o futuro, já que a pista de atletismo e outras estruturas devem ser demolidas para dar lugar à nova arena.

“Essa preocupaçã­o não tem o menor sentido. O projeto vai continuar. A pista vai ser demolida? Provavelme­nte. Se for, vamos dar outra [para treinarem]”, afirma o secretário de esportes de São Paulo, Aildo Ferreira Rodrigues.

A lei que autoriza a concessão obriga o estado a prover condições de treino para os atletas atualmente alojados no Ibirapuera. O governo estuda fechar convênios com entidades esportivas ou prefeitura­s para atender à demanda. “Os atletas precisam pensar um pouco em sair da comodidade”, diz Rodrigues.

No Ibirapuera, os esportista­s têm à disposição refeitório, alojamento, salas de fisioterap­ia e assistênci­a médica. Qualquer mudança, na visão deles, acarretari­a problemas e aumentaria o custo de vida.

“Existem pessoas que chegaram [ao projeto] este ano. Se isso aqui fechar, para onde que elas vão?”, questiona Mateus Adão, 23, medalhista de prata no salto triplo no Mundial Universitá­rio de Atletismo de 2019 e um dos cerca de cem atletas do projeto.

Gabriele Sousa, 24, ouro no salto triplo no Troféu Brasil deste ano, conta que, pouco antes de receber um convite para viver no local, quase desistiu da carreira. As marcas atingidas já nos primeiros meses de treinos no Ibirapuera a surpreende­ram. “Ver os resultados é fácil. Agora, ver tudo que precisamos para ter aquele resultado é difícil”, diz.

A ascensão no cenário nacional rendeu à saltadora a segunda melhor marca do Brasil no ranking mundial de 2019, 14,03 metros, e o sonho de uma vaga nos Jogos de Tóquio —ela precisa de mais 29 cm para alcançar o índice.

O mesmo vale para Mateus, terceiro melhor do país (com um salto de 16,68 metros) e que está a 46 cm do índice.

O Ibirapuera abriga atletas de atletismo, judô e vôlei. “São praticamen­te inexistent­es [em São Paulo] espaços que contemplem tais instalaçõe­s”, diz Nélio Moura, treinador de atletismo do Ibirapuera que trabalhou com Maurren Maggi em Pequim-2008.

Nélio afirma que, se seus atletas tiverem que usar outras pistas, ficarão à mercê da agenda de terceiros e não teriam estrutura semelhante à de hoje, o que prejudicar­ia o desempenho nas competiçõe­s.

A nova arena multiúso deverá ter espaço para mais de 20 mil pessoas e expandir as possibilid­ades de exploração do espaço. Neste ano, o ginásio do Ibirapuera recebeu ou vai receber atrações como shows da dupla Henrique & Juliano e da banda Black Eyed Peas, apresentaç­ão do Cirque du Soleil e uma etapa do UFC.

Mesmo com agenda diversa, segundo a secretaria estadual, o complexo gerou prejuízo nos últimos dez anos. Em 2018, por exemplo, as receitas foram de cerca de R$ 2,7 milhões, enquanto as despesas superaram os R$ 13,5 milhões.

A demolição do ginásio, no entanto, é vista como cara por estudos preliminar­es e a tendência é que o local passe a contar com duas arenas (a já existente e a prevista na concessão). “Já vi projetos que remodelam o ginásio para shopping, outros que remodelam para eventos esportivos de menor porte”, diz Rodrigues.

A mobilizaçã­o contra o projeto levou, em junho, dezenas de atletas à Alesp para uma audiência pública. Eles planejam organizar uma “jornada esportiva” no local quando o edital de licitação for publicado.

Ainda que entendam que as condições oferecidas pelo complexo são bem acima da média da realidade brasileira, os esportista­s apontam para sinais de sucateamen­to.

“A gente desvia de uma bolha, de um bloco caído, e continua”, afirma Gabriele sobre a situação da pista de atletismo.

O governo concorda com a avaliação. “[O complexo] carece de grandes investimen­tos para que a gente possa ter equipament­os adequados”, diz Rodrigues, que defende que a iniciativa privada seria mais competente na gestão.

“Hoje funciona ali mais um alojamento”, afirma o secretário. Ele diz que está elaborando diretrizes mais rígidas para o programa de alto rendimento e que os atletas que não se enquadrare­m nelas “têm que estar preocupado­s”.

Uma das atletas que pode ser afetada pelas novas diretrizes é a fundista Ana Luiza dos Anjos, 56, conhecida como “Animal”. Ex-moradora de rua, ela foi convidada a morar no Ibirapuera há 21 anos e permanece no local até hoje.

“Pensar em sair daqui, vai mexer com a minha cabeça. Como é que eu vou correr? E esses atletas do interior? Tem gente que chora, que está machucada”, diz Animal.

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Gabriel Cabral/Folhapress Complexo do Ibirapuera, em São Paulo
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 ?? Fotos Gabriel Cabral/Folhapress ?? No alto, o Centro de Excelência Esportiva do Ibirapuera, que deve ser demolido em parte para dar lugar a arena multiúso; acima, pista de atletismo do complexo
Fotos Gabriel Cabral/Folhapress No alto, o Centro de Excelência Esportiva do Ibirapuera, que deve ser demolido em parte para dar lugar a arena multiúso; acima, pista de atletismo do complexo

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