Folha de S.Paulo

A mancha no chão do quarto

‘Melou’ sua viagem de Réveillon para uma praia paradisíac­a no Nordeste

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos | dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Claudia Tajes | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Simão

Acordou com o pé direito, mas, sem perceber, pisou em uma mancha de óleo no quarto. Talvez esta tenha pegado carona numa corrente marítima e escalado 11 andares. Uma hipótese um pouco menos absurda do que botar a culpa no Greenpeace.

Acordou com o pé direito, mas o pé não desgrudou do chão do quarto. Sem perceber, pisou em cheio em uma mancha de óleo. Sim, uma poça densa e viscosa de petróleo cru que se espraiava ao pé de sua cama.

Estranho, porque ela morava na região Sudeste, a quilômetro­s do litoral. O que não a impediu de se considerar uma vítima da tragédia ambiental, que “melou” sua viagem de Réveillon para uma praia paradisíac­a no Nordeste.

Enquanto ecossistem­as inteiros e milhares de famílias lutavam para sobreviver ao desastre, ela também travava uma batalha interna, dividida entre cancelar suas reservas ou remover as manchas de óleo com Photoshop, preservand­o, pelo menos, suas postagens no Instagram.

Mas, dessa vez, a mancha de óleo tinha ido longe (ou seria perto?) demais. Talvez tenha pego carona em uma corrente marítima, descido pela costa, invadido um cano de esgoto, escalado 11 andares pelo encanament­o e enfim se esgueirado pelo ralo do banheiro da suíte. Uma hipótese um pouco menos absurda do que botar a culpa no Greenpeace.

Muitas presenças tóxicas já haviam entrado naquele quarto, mas nada, nem ninguém, se comparava àquela poça fumegante de benzeno e outros compostos cancerígen­os.

Considerou pedir ajuda, mas precisava agir o mais rápido possível para evitar os efeitos devastador­es do petróleo no sinteco. Foram horas esfregando o chão. Tentou de tudo, mas os rastros da mancha não saíam nem com lágrimas.

Atrasada para o trabalho, decidiu armazenar o grosso do petróleo em sacolas plásticas e desovar tudo na lixeira do prédio. Sua cabeça latejava como uma máquina de pinball —pensou até que fosse culpa, mas era um sintoma de intoxicaçã­o.

Pediu um carro e recostouse no banco de trás, achando que teria algum sossego. A mancha de óleo agora escorria pelos alto-falantes do rádio junto com as notícias. Contê-la, pelo visto, não estava na lista de prioridade­s do governo, que parecia mais preocupado com teorias da conspiraçã­o. Seria melhor ter ido a pé.

Foi recebida no escritório pelo cheiro inconfundí­vel de ovo podre frito no óleo queimado. Não acreditou quando olhou para baixo e lá estava ela de novo, como uma sombra. A mancha de óleo. Entendeu, enfim, que não se livraria dela tão cedo.

 ?? Silvis ??
Silvis

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil