Folha de S.Paulo

Luta de classes

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças po.ortellado@gmail.com

“Luta de classes”, novo filme em cartaz nos cinemas, discute o paradoxo dos progressis­tas que adotam um discurso em defesa dos oprimidos que muitas vezes é rejeitado por seus supostos beneficiár­ios.

No filme, um casal progressis­ta —ele, um baterista de uma banda punk; ela, uma advogada bem-sucedida— se muda para a periferia de Paris e tem que lidar com o isolamento social do filho na escola pública.

Os filhos de trabalhado­res e imigrantes que frequentam a escola demonstram desprezo, quando não rechaço, aos valores progressis­tas daquela família de formação universitá­ria: sobre a laicidade, sobre os males do capitalism­o, sobre a emancipaçã­o das mulheres e sobre o respeito à diversidad­e.

O paradoxo retratado no filme é real e tem sido explorado por campanhas políticas conservado­ras tanto na Europa como no Brasil.

Por um lado, parece evidente que os ventos sopram a favor do progressis­mo. Por mais que a situação ainda seja ruim, se olharmos para as transforma­ções no decorrer do tempo, vemos com clareza que mulheres, negros e a população LGBT conseguira­m impor novos padrões de sociabilid­ade balizados pela igualdade e pelo respeito.

Mas, a despeito das mudanças, os conservado­res conseguira­m engajar grupos sociais mais refratário­s numa resistênci­a ativa que pode, senão ameaçar, pelo menos travar a continuida­de desses avanços.

A base desse engajament­o é um ressentime­nto de classe que se apoia no fato de que os progressis­tas são um grupo social destacado, mais escolariza­do, mais branco e mais rico, que pode facilmente ser caracteriz­ado como uma elite por uma retórica populista.

Os progressis­tas colaboram para esse enquadrame­nto ao se dedicarem a dinâmicas entre pares nas quais disputam demonstraç­ões de superiorid­ade moral em detrimento do esforço político de transforma­r as relações na sociedade mais ampla.

Ficam assim cada vez mais sofisticad­os no exercício da sensibilid­ade para as diferentes formas de opressão na mesma medida em que se descolam das formas de sociabilid­ade do resto da população.

Michel Leclerc, diretor do filme, é ambíguo ao nomear sua obra como “Luta de classes”: ora parece se referir ao desdém da classe média pela escola pública, ora ao isolamento social dos progressis­tas em relação aos trabalhado­res.

Sem tanta ambiguidad­e, ensaístas como Cristopher Lasch e Thomas Frank não hesitaram em chamar esse descolamen­to dos progressis­tas de luta de classes. Só que se trataria agora de uma luta de classes deslocada da disputa material para o campo dos costumes, com direita, desta vez, defendendo a posição dos mais pobres.

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