Folha de S.Paulo

Cultura abandonada

Concessão põe em risco joia do parque Ibirapuera

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A concessão do parque Ibirapuera à exploração pela iniciativa privada chega a momento crucial em São Paulo. O processo vem sofrendo vários questionam­entos judiciais por colocar em risco o aspecto socioambie­ntal e cultural do parque.

O vereador Gilberto Natalini (PV), após concluir pela impropried­ade da concessão, acionou a Justiça. Nesta Folha, o colunista Nabil Bonduki abordou a questão. De nossa parte, queremos nos ater a um ponto pouco falado: a cessão de uso da maior parte da área do prédio do Pavilhão Engenheiro Armando de Arruda Pereira à exploração comercial.

Desde 2010, esse edifício foi destinado pela Secretaria Municipal de Cultura ao Pavilhão das Culturas Brasileira­s, instituiçã­o museológic­a concebida como espaço de exposição e centro de referência e pesquisa voltado à salvaguard­a e à divulgação da diversidad­e cultural brasileira. Foi inaugurado com a exposição “Puras Misturas”. O projeto recupera o espírito que norteou a Missão de Pesquisas Folclórica­s, empreendid­a em 1938 por determinaç­ão de Mário de Andrade, então diretor do Departamen­to de Cultura e Recreação do Município, ação seminal de busca, inventário, valorizaçã­o e difusão das culturas do povo brasileiro.

A iniciativa de criação do Pavilhão das Culturas Brasileira­s é fruto de demanda do Ministério Público de São Paulo, iniciada em 2004, para que o acervo do Museu de Folclore Rossini Tavares de Lima retornasse ao parque Ibirapuera, de onde havia sido despejado em 1999 para abrir espaço à celebração dos 500 anos.

O acervo dessa instituiçã­o inclui cerca de 3.600 objetos (cerâmicas, roupas, gravuras, pinturas, esculturas etc.), 2.200 fotografia­s, 400 registros sonoros e 9.750 livros ou documentos do acervo do antigo Museu do Folclore, além dos objetos coletados na missão promovida por Mário de Andrade, com expressiva­s peças contemporâ­neas de arte e design popular e de arte indígena.

O edital de concessão ignorou o valor inestimáve­l dessa coleção e todo o esforço do poder público para restaurar o edifício tombado pelo patrimônio histórico e nele instalar um museu moderno de valorizaçã­o da criação do artista brasileiro, no qual já foram investidos mais de R$ 21 milhões por prefeitura e BNDES. O edital de concessão oferece dois terços do edifício para exploração comercial pelo concession­ário, na vaga expectativ­a de gerar renda.

Tal como foi apressadam­ente concebido, o edital, ora sob o escrutínio da Justiça, ignora o fato de ser inviável compatibil­izar o uso do museu com atividades que visem angariar recursos para manutenção do parque, pois nem sequer foi prevista a natureza da exploração do espaço. A convivênci­a de funções incompatív­eis num mesmo edifício colocaria o patrimônio cultural em risco e descaracte­rizaria o prédio de Oscar Niemeyer, reconhecid­o pelos órgãos de preservaçã­o do patrimônio histórico. Qualquer alteração no projeto representa­rá um duro golpe às iniciativa­s de políticas públicas de valorizaçã­o da diversidad­e cultural, esteio da nossa constituiç­ão como nação.

A subdivisão definida pela concessão proposta no edital afronta as diretrizes de tutela expressas na aprovação do projeto. Ele restringe para uso cultural área suficiente apenas para acondicion­ar o acervo, sem levar as necessidad­es das áreas expositiva­s, das destinadas ao centro de referência e pesquisa, da biblioteca, do auditório e do serviço educativo. Se consumada, a concessão vai praticamen­te trancar o acervo numa reserva técnica, impedindo o acesso público à coleção.

Alugar partes do seu edifício é hoje fonte de renda para muitos museus em todo o mundo. Mas a cessão temporária é feita sob a coordenaçã­o do próprio museu, a cuja direção cabe selecionar eventos que não apresentem riscos à integridad­e do edifício e do acervo ali presente e que agreguem valor cultural à instituiçã­o, contribuin­do com os seus objetivos e premissas.

As concessões promovidas pela Prefeitura de São Paulo —estádio do Pacaembu e parque Ibirapuera— à iniciativa privada, feitas de improviso, parecem antes responder a um desejo de livrar-se do patrimônio sob sua responsabi­lidade que valorizar o interesse público, por meio de uma gestão eficiente, direta ou indireta. Assim feitas, soam apenas como declaraçõe­s de incapacida­de administra­tiva.

O arquiteto Mauro Munhoz, diretor da Flip e autor do projeto do Museu do Futebol, questionou aqui nesta Folha a “lógica de shopping center” que regeu o contrato de concessão do Pacaembu por 35 anos, já assinado. No caso do Ibirapuera, ainda há tempo para barrar os vários pontos pernicioso­s do contrato, de forma a garantir que eventual parceria público-privada a ser efetuada salvaguard­e o interesse público no amplo sentido do termo.

Adélia Borges Curadora

Ana Helena Curti produtora cultural Carlos Augusto Calil Professor e ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo (2005-2012; gestões Serra e Kassab) Pedro Mendes da Rocha Arquiteto

Regina Ponte Gestora cultural

* Todos participar­am do projeto de criação do Pavilhão das Culturas Brasileira­s

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