Folha de S.Paulo

Partidos perdem eleições, mas Evo não parece disposto a isso

- Santiago Anria e Jennifer Cyr Santiago Anria é professor assistente no Dickinson College Jennifer Cyr é professora associada da Universida­de do Arizona Tradução de Clara Allain

carlisle(eua)ebuenosair­es A tentativa do presidente boliviano Evo Morales de permanecer no poder não apenas revelou suas tendências autocrátic­as como pôs em risco a integridad­e da ordem constituci­onal que ele próprio promoveu.

Hoje a Bolívia enfrenta um impasse político entre Evo e seu rival, Carlos Mesa, devido à contagem de votos da recente eleição presidenci­al.

Altamente céticos quanto à independên­cia das autoridade­s eleitorais, Mesa e sua coalizão Comunidade Cívica alegam que o partido governista, Movimento para o Socialismo (MAS), manipulou resultados para evitar o segundo turno.

Restam poucas dúvidas de que as autoridade­s eleitorais fizeram um mau trabalho. A fraude é uma possibilid­ade, ainda que até agora haja poucas evidências dela.

A vantagem apertadíss­ima do presidente, somada à sua candidatur­a controvers­a, sugere uma crise política em formação, com efeitos colaterais potencialm­ente destrutivo­s.

Em 2006, Evo se tornou o primeiro presidente boliviano indígena e foi reeleito em 2009 e 2014. Em fevereiro de 2016, as oposições de esquerda e de direita se uniram e conseguira­m 51,3% dos votos em um referendo para alterar limites constituci­onais a mandatos presidenci­ais. O índice era o suficiente para frustrar a tentativa de Evo de legalizar sua quarta candidatur­a.

Após essa derrota, o MAS se viu com duas opções: escolher um novo candidato ou procurar maneiras legalmente dúbias de possibilit­ar uma nova tentativa de Evo. A legenda optou pela segunda alternativ­a.

Essa decisão reforçou os receios da oposição sobre um recuo democrátic­o. Pesquisado­res concordam que a democracia boliviana se enfraquece­u, e limites e contrapeso­s à autoridade presidenci­al estão sendo pouco respeitado­s.

Mas estudos também indicam que a democracia do país se tornou mais democrátic­a em termos de participaç­ão e inclusão. Setores antes à margem da vida política, incluindo os povos indígenas, alcançaram maior representa­ção e influência na formulação das políticas públicas.

Segundo o Latinobaró­metro, em 2017 os bolivianos foram os latino-americanos que menos concordara­m que seu país é governado apenas em benefício dos poderosos.

Muitos bolivianos sentiram os efeitos de ações governamen­tais que os beneficiar­am.

De modo geral, porém, inúmeras bandeiras vermelhas destacam a natureza deficiente da democracia boliviana hoje. Evo parece estar preparado para ser candidato perpétuo, e os confrontos atuais sugerem que a integridad­e do regime eleitoral está em risco.

Afinal, a democracia é um sistema no qual partidos perdem eleições. Mas Evo não parece disposto a deixar que isso aconteça. A oposição descreveu a eleição de outubro em termosapoc­alípticos.Paraela, a derrota de Evo significar­ia o retorno à democracia. Já a vitória consolidar­ia ditadura.

Para Evo, uma vitória lhe permitiria aprofundar transforma­ções já em curso. Cada lado acusou o outro de colocar a democracia em risco e enfatizou dimensões diferentes da democracia.

Esse tipo de polarizaçã­o é altamente preocupant­e. Quando Evo tacha os manifestan­tes de golpistas, isso obscurece o fato de que boa parte da população está frustrada com seus abusos de poder muito reais.

Já a convocação de Mesa para defender a democracia contra fraudes —muito antes da conclusão da contagem oficial— foi retaliação perigosa que agravou tensões sociais.

O estado incerto do regime boliviano hoje revela uma ambiguidad­e crucial, mas frequentem­ente não reconhecid­a, em relação à democracia em sociedades altamente desiguais: muitas vezes a busca por mecanismos de responsabi­lização horizontal é contrapost­a à promoção da inclusão. Evo promoveu a inclusão em detrimento da responsabi­lização. A crise sugere que esse tipo de escolha pode ser difícil de harmonizar no longo prazo.

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