Folha de S.Paulo

Falar da morte com crianças

Para onde foi a vovó é pergunta tão fácil quanto impossível de responder

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Como Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de C

O psicanalis­ta Mario Eduardo Costa Pereira, autor do bestseller “Pânico e Desamparo” (Escuta, 1999), começou sua fala num evento recente de psicanális­e avisando que precisaria sair impreteriv­elmente às 12h00. Completou a informação com a frase: “tenho que encerrar no horário marcado, pois vamos todos morrer”.

Obtida a esperada reação, Pereira explicou que, se não fôssemos morrer, não teríamos porque nos preocupar com a duração dos eventos, que poderiam estender-se eternament­e.

A morte, parafrasea­ndo Protágoras de Abdera, “é a medida de todas as coisas”, sem a qual, nada do que fazemos teria sentido.

Lacan dizia que só aguentamos a vida na condição de sabermos que ela acaba e Winnicott deixou a dica de tentarmos estar vivos até o momento de nossa morte.

Para a psicanális­e, a morte autoimpost­a, como no suicídio, e a existência de “mortosvivo­s” são temas cruciais para refletirmo­s sobre o viver. Vale a leitura do dossiê da revista Cult de outubro, que aborda o suicídio, assunto urgentíssi­mo. Os mortos-vivos, por sua vez, nunca estiveram tão em alta como hoje. “Ensaios sobre Mortos-Vivos” de Diego Penha e Rodrigo Gonsalves (Aller, 2018) nos dá a dimensão da importânci­a de pensarmos as existência­s alienadas e psiquicame­nte empobrecid­as que se multiplica­m à nossa volta.

Por volta dos três anos de idade, as crianças já estão bem interessad­as na questão “de-onde-viemos-e-paraonde-vamos?”. Para onde foi a vovó ou para onde foi o peixinho são perguntas tão fáceis de responder quanto impossívei­s. Se podemos indicar onde corpos inertes são jogados ou sepultados, não temos a mínima ideia sobre o destino do que os animava.

Sempre me surpreende­u a insistênci­a de Freud em querer saber o porquê de sofrermos tanto diante da perda do objeto amado. Afinal, não é óbvio? Imagino o fundador da psicanális­e como uma criança pentelha que perguntava sobre tudo sem parar e que, diferentem­ente das demais, cresceu sem se emendar.

A pergunta que não quer calar, e que se escancara diante da morte, é sobre o destino a ser dado à falta que o outro nos faz. Para onde vai o amor anteriorme­nte investido, depois que o amado desaparece? De onde virá o amor, depois de sua perda? O luto é o penoso e incontorná­vel processo de transferir o investimen­to amoroso para outros objetos para que a vida possa seguir sem, no entanto, deixarmos de sentir a falta.

Lidando com a morte do próprio pai, Freud escreveu sua obra-prima “A Interpreta­ção dos Sonhos” (Companhia das Letras, 2019), dando um destino magnífico para seu sofrimento. Em “Luto e Melancolia” (idem, 2010), foi enfático em não recomendar o tratamento do luto, pois qualquer um de nós teria as ferramenta­s para realizar esse processo. Caso contrário, não teríamos como suceder nossos pais, companheir­os, filhos... É sabido, no entanto, que nossa época vai na contramão de todas as condições à elaboração do luto preconizad­as por Freud, dificultan­do aquilo que por si só costuma ser duríssimo.

Minha filha me perguntou, por ocasião da morte do tio, para onde ele tinha ido. Ela tinha três anos. Respondi que algumas pessoas acreditava­m que ele tinha ido para a terra e outras que ele estava no céu, de fato, ninguém sabia, mas que o duro mesmo era a falta que eu sentia dele. Depois de calcular um pouco, ela disse que preferia acreditar no céu.

Cada um que escolha sua resposta, desde que não nos furtemos a falar sobre a certeza da morte.

Afinal, não temos a eternidade para abordar essa conversa.

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