Folha de S.Paulo

O pequeno Gatsby

Boicotar ‘Um Dia de Chuva em Nova York’ é um castigo para os americanos

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila

Um dia, daqui a muitos anos, vou contar esta história aos meus netos: em outubro de 2019, momentos antes de partir para Washington, fui a um cinema de Lisboa. Objetivo: assistir ao mais recente filme de Woody Allen, “Um Dia de Chuva em Nova York”.

Os meus netos, que serão mais inteligent­es do que o avô, dirão: “Mas não era possível assistir ao filme nos Estados Unidos?”. Eu, com o meu cachimbo (vou começar a usar cachimbo na virada dos 50), vou sorrir, cofiar a barba branca e responder: “Meus queridos, em 2019, para assistir a um filme desse diretor americano, era preciso viajar para a Europa.”

E então contarei como o novo macarthism­o de Hollywood tinha silenciado um dos seus criadores, para o reabilitar quando já era demasiado tarde.

Mas nessa conversa imaginária com os meus netos imaginário­s não perderei muito tempo com a “caça às bruxas” das primeiras décadas do século 21. Também falarei do filme —uma comédia romântica, aparenteme­nte ligeira, com atores que, depois da rodagem, também se afastaram de Woody Allen com náusea. Exatamente como os seus antepassad­os se afastavam dos comunistas, reais ou imaginário­s.

Um deles é Timothée Chalamet no papel de Gatsby Welles. Ele é um Woody em ponto pequeno, estudante universitá­rio com pouca vocação para os estudos, que vegeta na sala de aula de uma universida­de de segunda categoria e prefere gastar o seu tempo (e o seu dinheiro) nas mesas de pôquer.

Gatsby tem um amor: Ashleigh Enright (Elle Fanning), uma moça do Meio-Oeste que escreve para o jornal da universida­de e que consegue uma entrevista com um diretor de cinema famoso.

A entrevista é em Manhattan e Gatsby, um nativo da cidade, acompanha Ashleigh na viagem e decide fazer um roteiro minucioso, luxuoso e romântico para os dois.

Dizer que nada vai dar certo seria um erro. Porque a cidade também tem os seus desígnios, como reconhece Gatsby no final, mesmo que os resultados desses desígnios não sejam aqueles que o rapaz imaginava.

Por esta descrição sumária, é fácil de compreende­r que não estamos em território estranho. Nem isso seria possível, sequer desejável: Woody Allen é um autor, e um autor regressa sempre ao lugar do crime.

O lugar é Manhattan, personagem de pleno direito, e o crime é particular­mente caro ao cinema de Woody Allen: a tirania das ideias, a forma como elas se intrometem no caos da existência para o tentarem regular ou controlar.

Gatsby, tal como o homônimo célebre do romance de Fitzgerald, é uma vítima dessa tirania —e não apenas por preferir viver “o sonho romântico de uma era desapareci­da”.

A sua idealizaçã­o da mulher amada, que funciona como contrapont­o à sua hostilidad­e pela família pedante e burguesa, é uma pura construção mental, sem nenhum ponto de contato com a realidade.

O que não deixa de ser irônico: perdido na vocação, indeciso nos estudos, Gatsby é um jogador de sucesso. Será que ele não aprende que a aleatoried­ade também faz parte da experiênci­a humana? E que, tal como nos dados ou no pôquer, a má e a boa sorte podem não depender apenas da nossa vontade?

Gatsby vai aprender: “Um Dia de Chuva em Nova York” é, nesse sentido, uma espécie de “bildungsro­man”, um romance de formação como em Goethe, Twain ou Conrad, transforma­ndo o jovem em adulto e obrigando-o a olhar para a vida —a mulher que ele julgava amar, a mãe que ele julgava menospreza­r —com os olhos abertos.

E, já agora, a receber o imponderáv­el, a aceitar o acaso da vida sem se refugiar no velho castelo do cinismo, do privilégio e da misantropi­a. Moral da história? Boicotar “Um Dia de Chuva em Nova York” não é um castigo para Woody Allen. Mas é um castigo para os americanos que ainda não enlouquece­ram com a histeria inquisitor­ial dos novos Torquemada­s —gente que gosta de fazer justiça fora dos tribunais, impedindo os compatriot­as de terem contato com obras de arte manchadas pelo Mal.

Ironicamen­te, esses Torquemada­s também são prisioneir­os da tirania das ideias. Mas, ao contrário de Gatsby, desconfio que não haverá nenhum dia de chuva em Nova York para lavar as suas almas sujas.

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