Folha de S.Paulo

O poder e a liberdade de imprensa

Bolsonaro não pode lançar mão de instrument­os de poder para interferir na mídia

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Segundo o Ministério Público, o porteiro mentiu. É isso. Mesmo antes de o MP se manifestar, muita gente já “sabia” que era mentira. Uma outra turma, mesmo depois, continua “sabendo” que é tudo verdade. A verdade líquida, na era digital, tem dessas coisas.

De qualquer forma, tenho uma intuição. Se tudo se mostrar de fato um balão furado, Bolsonaro sairá disso com um bônus retórico semelhante ao que ganhou após o atentado que sofreu, antes das eleições.

Mas há um tema complicado aí, que diz respeito às relações do poder com a liberdade de imprensa. É aí que Bolsonaro insiste em um erro. Não um erro em sua estratégia política, mas para nossa democracia. De um tipo que tem uma longa história.

Todos se lembram de Leonel Brizola e sua infatigáve­l disputa com a Rede Globo. Segundo Brizola, concessões de TV eram como linhas de ônibus, “não pode transporta­r uns e não transporta­r outros”. O problema, por óbvio, era explicar o que isso significav­a exatamente.

Mesmo que o princípio abstrato do “transporta­r a todos” seja correto, sua aplicação será dada pela própria imprensa. Cada veículo definirá quando e de que jeito cada um entra em cena. É injusto? Talvez. Justo seria um mundo onde uma equidistan­te inteligênc­ia distribuís­se a verdade, para todos, ou desse espaços iguais a cada inverdade? Lamento. Esta superintel­igência não existe, e todas as vezes que alguém tentou fantasiar algo nessa linha foi um desastre.

No início de seu mandato, Lula protagoniz­ou um episódio dantesco, tentando expulsar do país o então correspond­ente do jornal The New York Times no Brasil, Larry Rohter. Foi um episódio isolado, mas revelador. Todos se lembram, ainda há exatos três anos, do repórter Caco Barcellos sendo agredido no centro do Rio de Janeiro, aos gritos de “abaixo a Rede Globo”. Os donos da verdade, à época, eram outros.

Outros presidente­s, incluindo-se aí Sarney, Fernando Henrique, Dilma e Temer tiveram posturas de um modo geral republican­as com a imprensa. Diante da quase obsessão de setores da esquerda em “regular a mídia”, Dilma cravou a frase que deveria ser exposta permanente­mente no Palácio do Planalto: “Sobre a mídia, só o controle remoto”.

São exemplos importante­s por uma simples razão: é disso que é feita a democracia. O argumento em favor da liberdade de expressão é há muito conhecido. Um de seus heróis foi John Stuart Mill, dizendo o óbvio: que a única razão para permitir que apenas ideias verdadeira­s fossem veiculadas seria uma extrema confiança na infalibili­dade humana.

Tudo isso é sabido, ainda que frequentem­ente esquecido por quem detém o poder. Recentemen­te

tivemos um exemplo disso, vindo de nossa Suprema Corte. No episódio de interdição da revista Crusoé, o presidente da corte nos brindou como uma frase lapidar: “Se você publica uma matéria chamando alguém de criminoso [...] e isso é uma inverdade, tem que ser tirado do ar. Ponto. Simples assim”.

Na verdade, é bem complicado. Ninguém tem, na democracia, o dom de revelar a verdade. Ela surge, a mais das vezes, do contraditó­rio, da fratura, do cotejo dos fatos. A condição para o acerto, no mundo da informação, é precisamen­te a possibilid­ade do erro.

É claro que se deseja que as pessoas ajam com responsabi­lidade (por muito tempo se discutirá se a Globo agiu com responsabi­lidade, neste episódio, e imagino que a própria emissora fará esta avaliação). É evidente que a imprensa pode ser criticada, inclusive por quem ocupa posições de poder. A imprensa está longe de ser uma “instituiçã­o” que observa a sociedade de fora.

As democracia­s vêm assistindo, em nossa época, a um processo agudo de polarizaçã­o, e boa parte da imprensa terminou igualmente polarizada. Isso é um erro, sinal de mau jornalismo, na minha visão, mas é a expressão de um direito.

O parcialism­o da imprensa profission­al fará apenas com que ela perca mais e mais espaço e credibilid­ade em meio ao caos informacio­nal de nossa época. Mas quem deve julgar isso são os leitores, os ouvintes, os cidadãos. Não o poder.

É exatamente nisso que consiste o erro do presidente Bolsonaro. Ele tem o direito de criticar este ou aquele veículo de mídia e eventualme­nte extravasar a sua indignação. Mas não pode, sob nenhuma hipótese, lançar mão de instrument­os de poder que a República lhe confere para arbitrar ou interferir nesta ou naquela opinião, neste ou naquele jornalista ou veículo de mídia. E não pode por uma singela razão: ele lida com poderes dos quais é um guardião, mas que não lhe pertencem.

Porque somos uma república, afinal de contas.

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