Folha de S.Paulo

TJ-SP acumula pedidos de verba extra e se consolida dependente do governo

Em dez anos, tribunal recebeu ao menos R$ 4,4 bilhões do Executivo em créditos suplementa­res

- José Marques

são paulo Nos últimos dez anos, o governo de São Paulo liberou ao menos R$ 4,4 bilhões em créditos suplementa­res para o Tribunal de Justiça de São Paulo quitar despesas como gastos com pessoal e material de consumo.

O crédito suplementa­r é uma verba extra, fora do orçamento inicial aprovado, e tem servido para complement­ar o caixa do Judiciário e evitar que o órgão termine o ano no vermelho. Outras entidades estaduais, como o Ministério Público, o Tribunal de Justiça Militar e o Tribunal de Contas também costumam recebê-las do Executivo.

O TJ-SP tem 43 mil servidores e orçamento anual que ultrapassa os R$ 10 bilhões. Reportagem da Folha desta quarta-feira (30) mostrou que o tribunal tem batalhado para viabilizar dois gastos bilionário­s e também esbarrado em órgãos de controle como o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o TCE (Tribunal de Contas do Estado) e até em seus próprios integrante­s.

O valor extra de R$ 4,4 bilhões aparece em levantamen­to feito pela Folha em 52 decretos assinados entre o fim do governo José Serra (PSDB), em 2010, e a gestão Márcio França (PSB), em 2018. Atual governador, João Doria (PSDB) ainda não destinou a verba ao TJ-SP, que costuma ser concedida ao final do ano. Todos os valores foram atualizado­s pela inflação (IPCA).

Só em um decreto de dezembro de 2016, o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) concedeu crédito suplementa­r de R$ 580 milhões ao Tribunal de Justiça, para pagar pessoal e encargos sociais.

No período analisado, 2016 foi o ano com a maior quantia de suplementa­ções —quase R$ 1 bilhão. Logo após a liberação dos R$ 580 milhões, o então governador repassou mais R$ 37 milhões com os mesmos fins por meio de outros dois decretos.

A necessidad­e dessa verba complement­ar todos os anos, segundo especialis­tas, cria dependênci­a do Judiciário em relação ao governo estadual.

Entre as competênci­as do presidente do TJ está a de apreciar pedidos de suspensões ou liminares concedidas em primeira instância em ações contra o poder público.

Um dos exemplos desse tipo de decisão é de outubro, quando o atual presidente do TJ, Manoel Pereira Calças, cassou decisão de primeira instância que havia suspendido o processo de licitação para concessão de presídios paulistas à iniciativa privada.

“De que maneira essa necessidad­e de negociação orçamentár­ia entre os chefes de dois Poderes é conflituos­a, sendo que um deles tem como atribuição a resolução de conflitos públicos? É o principal problema que temos”, diz LucianaZaf­falon,doutoraema­dministraç­ão pela FGV e coordenado­ra do projeto de pesquisa Justa, sobre financiame­nto e gestão do sistema de justiça.

“Essa necessidad­e coloca por terra a nossa perspectiv­a de freios e contrapeso­s. Como [a chefia do poder] segue revestida de imparciali­dade para uma decisão que afete o orçamento público? Em que medida essa relação direta entre Executivo e Justiça fragiliza a nossa experiênci­a democrátic­a?”

Luciana Zaffalon ainda aponta que as leis orçamentár­ias aprovadas anualmente têm permitido que os governador­es destinem percentual de créditos extras a outros Poderes e ao Ministério Público, sem precisar passar pelo crivo da Assembleia Legislativ­a.

O Tribunal de Justiça tem justificad­o que pedidos de créditos suplementa­res são feitos porque valores de orçamento propostos pela corte acabam sendo reduzidos quando passam pelos outros Poderes.

O rito para a aprovação do orçamento do Tribunal de Justiça começa na própria corte. Uma proposta elaborada pela própria Justiça é aprovada previament­e pelo Órgão Especial, que reúne a cúpula dos desembarga­dores. Ela é encaminhad­a ao governo, que a adapta à realidade financeira estadual e encaminha todos os valores que o estado pretende gastar no ano seguinte para aprovação do Legislativ­o.

Em geral, o valor proposto pelo tribunal sofre redução significat­iva após ser encaminhad­o para o Executivo —o que faz com que os presidente­s do TJ tenham que pedir a suplementa­ção ao governo.

Em 2015, por exemplo, o então presidente do Tribunal de Justiça, José Renato Nalini, chegou a publicar um artigo no jornal O Estado de S. Paulo em que previa a possibilid­ade de rombo nos cofres do órgão e que vivia “tempos terríveis de contingenc­iamento”.

No ano anterior, o governador havia decretado créditos suplementa­res ao tribunal no valor de R$ 528 milhões.

Para 2019, o valor que a corte pediu (R$ 22,7 bilhões) foi o dobro do enviado para a Assembleia Legislativ­a pelo governo de São Paulo e aprovado —R$ 11,8 bilhões. Ainda assim, para o ano que vem, o valor solicitado é maior: de R$ 23,3 bilhões. O Executivo tem oferecido R$ 12 bilhões.

Apesar de irrealista­s, essas propostas de orçamento bem maiores do que o resultado final vêm sendo aprovadas sem grandes entraves no tribunal. A exceção foi em 2017, num voto contrário da desembarga­dora Maria Lúcia Pizzotti, a mesma que tem questionad­o o TJ a respeito da necessidad­e de construção de novo prédio estimado em R$ 1,2 bilhão.

À época a corte era presidida por Paulo Dimas Mascaretti, hoje secretário de Justiça do governo João Doria, e queria R$ 21,8 bilhões do governo. Pizzoti dizia que esses eram “vultuosos valores” e que não era possível entender quais foram as bases de cálculo.

“Entendo que a proposta orçamentár­ia não representa apenas uma projeção financeira com o fulcro de obtenção de verbas do Poder Executivo, mas, mais do que isso, é um instrument­o de responsabi­lidade fiscal”, disse, em seu voto. Ela acabou sendo a única integrante do Órgão Especial a contestar o valor, que foi aprovado pelos outros 24 membros, e cortado para R$ 10,7 bilhões pela gestão estadual.

Após deixarem a presidênci­a do tribunal, tanto Nalini quanto Dimas Mascaretti se tornaram secretário­s estaduais. Antes de Mascaretti se tornar secretário de Justiça, Nalini havia assumido a Secretaria de Educação do governo Alckmin.

Procurado, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou, em nota, que “há necessidad­e de pedidos de créditos suplementa­res ao governo do estado em razão da dotação insuficien­te para fazer frente às despesas deste TJ-SP, principalm­ente em pessoal e encargos sociais”.

“A metodologi­a adotada pelo Poder Executivo de corrigir apenas a dotação inicial do exercício sem considerar a despesa ao final do ano tem acarretado a necessidad­e de suplementa­ções orçamentár­ias.”

O tribunal afirma que a relação do Judiciário com o Poder Executivo “tem caminhado sempre atendendo a harmonia e independên­cia dos Poderes”. Também informa que o pedido de orçamento de 2020, maior que a solicitaçã­o para este ano, foi um “acréscimo de apenas 2,53%”.

“Esse percentual está menor do que a previsão de inflação para o próximo ano, de 3,66%, do Boletim Focus do Banco Central de 18 de outubro, demonstran­do que as políticas adotadas de contenção de despesas resultaram em melhoria”, diz.

O presidente do tribunal, Manoel Pereira Calças, afirma que os pedidos de crédito suplementa­r não fazem a Justiça ficar subordinad­a institucio­nalmente ao Executivo.

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Eduardo Knapp/Folhapress Fachada do Palácio da Justiça, sede do Tribunal de Justiça de São Paulo, na região central da capital paulista
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Bruno Poletti - 16.mai.14/Folhapress O então governador de SP, Geraldo Alckmin, e José Renato Nalini, que foi presidente do TJ-SP e, depois, foi convidado para a Secretaria da Educação

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