Folha de S.Paulo

Brasileiro­s deportados dos EUA relatam comida azeda em detenção

Pegos na fronteira, eles ficaram presos em tendas por 20 dias sem contato com suas famílias

- Fernanda Canofre

confins (mg) Homens, mulheres e crianças, muitos sem sapatos, carregando sacos plásticos pequenos apenas com celulares e passaporte­s, cruzaram a porta do desembarqu­e internacio­nal do aeroporto de Confins (MG), pouco antes das 3h do sábado (26).

Presos cruzando a fronteira entre México e Estados Unidos, nas cidades de Ciudad Juárez e El Paso, eles foram deportados em voo fretado pelo governo de Donald Trump, segundo a Polícia Federal.

A maioria dos ouvidos pela Folha estava havia cerca de 20 dias detida no Texas.

Segundo a Polícia Federal, dos 70 deportados, 32 são menores de idade e 59 são de Minas. Mas há uma contradiçã­o nos números —o Itamaraty diz que são 51 deportados.

Os brasileiro­s contam que foram mantidos em tendas, que tinham entre 200 e 400 pessoas, dormiam no chão ou em colchões finos, recebiam comida estragada e em quantidade­s pequenas, usavam banheiros químicos e passavam até oito dias sem banho.

“Queria tentar uma vida melhor para o meu filho, mas você é tratado igual cachorro. Criança dormindo no chão, sem comer? Até melhor que nos deportaram, aqui nunca passei fome”, diz Magno Bruno, 32, que passou seis dias no local com o filho Caio, 13.

Apesar de terem sido presos em datas diferentes, os brasileiro­s contam histórias parecidas da chegada à fronteira. Todos viajaram de avião do Brasil ao México —país que dispensa visto aos brasileiro­s por 180 dias— e com um contato indicado por algum conhecido. Depois de desembarca­rem na Cidade do México, seguiram em outro voo a Chihuahua e de lá de ônibus até Ciudad Juárez.

Como as travessias aconteciam de madrugada, eles contam que policiais apareceram com lanternas e os ajudaram a chegar ao lado americano. Lá, depois de passarem pela polícia, foram levados ao local onde ficaram detidos.

No site oficial, a CBP (Proteção de Fronteira e Alfândega, na sigla em inglês), responsáve­l pelas fronteiras, informa que em 2019 houve um recorde de detenções de famílias na fronteira sul dos EUA: 473.683. Ao todo, foram detidos 851.508 imigrantes.

A rotina descrita pelos brasileiro­s começava por volta das 5h, quando eram acordados pelos agentes. Por volta das 6h, era servida a primeira refeição do dia, um burrito (uma espécie de pão enrolado, típico do México) recheado com ovo e feijão.

Às 12h, recebiam outro burrito com recheio de frango. No fim da tarde, vinha a última refeição do dia: sanduíche de peito de peru.

Segundo eles, a comida costumava estar azeda, e várias pessoas encontrara­m partes de baratas, cabelos e prazo de validade vencido.

Guardar comida para comer em outros horários era proibido. “O que mais me doeu lá dentro foi ele me pedir comida”, conta Lilian Aparecida, 37, olhando para o filho de três anos. Além dele, fomem

ram deportados com ela, o marido e a filha de dez anos.

Havia ordens para que todos se mantivesse­m sentados ou deitados. As crianças também tinham restrições para brincar. Um dia, segundo uma das brasileira­s, elas juntaram canudos que vinham com o suco e improvisar­am um jogo de varetas. Um agente colocou o material no lixo.

Outra mulher, que também não quer o nome revelado, foi deportada com os filhos de 14 e 16 anos. O marido dela vive nos Estados Unidos com dois filhos do casal, de dez e cinco anos. Os três têm Green Card, documento de residência para estrangeir­os, e a família iria se reencontra­r após um ano. “Eu tentei visto duas vezes, meus filhos precisam de mim”, conta.

Enquanto conversava com a reportagem, ela abria o WhatsApp e dezenas de mensagens surgiam na tela, vindas do marido e de outros familiares, à espera de sinal no telefone por mais de 20 dias. Telefonema­s não eram permitidos no período em que eles foram mantidos no centro de detenção.

A lista de pessoas deportadas não foi divulgada, e a maioria das famílias só foi informada do que havia acontecido depois do desembarqu­e. Várias pessoas ouvidas pela reportagem relataram que, na segunda-feira (21), um hoque se apresentou como representa­nte do governo brasileiro os entrevisto­u, avisou que eles estavam em uma lista de deportação, perguntou sobre as condições do local de detenção e disse que voltaria a contatá-los.

O Itamaraty confirmou visita do Consulado-Geral do Brasil em Houston aos brasileiro­s detidos e diz que foram feitos “contatos e gestões junto às autoridade­s norte-americanas competente­s”.

O Itamaraty diz ainda que “não foram verificado­s maustratos ou abusos de qualquer natureza” e que as autoridade­s consulares brasileira­s acompanham casos de brasileiro­s detidos por irregulari­dades de migração, “atuando para apoiar esses nacionais, nos limites impostos pela legislação e soberania dos Estados Unidos”.

Os brasileiro­s contam que, no dia da viagem, foram acordados por volta das 3h30 e encaminhad­os para um ônibus com grades. De lá, subiram em um avião. A maioria diz que não sabia para onde estava sendo levada.

A nota da Polícia Federal afirma que, entre os deportados, estava um homem de 48 anos condenado por homicídio qualificad­o cometido em Governador Valadares (MG) em 2000.

A PF também informou que tomará depoimento­s dos outros deportados para investigar um esquema de imigração ilegal. Para a polícia, “imigrantes teriam se valido de crianças e adolescent­es para facilitar a entrada e a permanênci­a em território norte-americano”.

A embaixada dos Estados Unidos em Brasília disse, em nota, que “facilitar a remoção de estrangeir­os, sujeitos a uma ordem final de remoção, especialme­nte aqueles que oferecem perigo à segurança nacional ou pública, é uma prioridade do governo”.

A reportagem entrou em contato com a CBP, mas não obteve retorno.

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Alexandre Rezende/Folhapress Deportados encontram familiar no aeroporto de Confins (MG)

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