Folha de S.Paulo

De olho no suspeito

O latim ‘suspectus’ prova que a etimologia pode ser reveladora

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira” | sex. Tati Bernardi | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrig

Nunca entendi muito bem por que a etimologia, o estudo da origem das palavras, perdeu prestígio com os estudiosos contemporâ­neos de línguas, mesmo mantendo entre leitores não especializ­ados sua posição como matéria linguístic­a divertida e de popularida­de garantida.

As razões alegadas para esse declínio acadêmico vão desde o esgotament­o do solo que teria sido promovido no século 20 pelos grandes nomes do ramo até sua identifica­ção com uma perspectiv­a de diletantis­mo aristocrát­ico, filológico, em grande parte fútil. Como disse Jorge Luis Borges, saber que o latim “calculus” significa pedrinha não ensina ninguém a fazer contas.

O gênio argentino tem razão, mas acho prudente manter um pé atrás com a acusação de inutilidad­e contra qualquer saber. O próprio Borges, com seus labirintos de referência­s literárias fictícias, ou seja, tiradas de trás da orelha, poderia ser vítima de um argumento semelhante. O risco de cair no antiintele­ctualismo é grande.

Quanto ao esgotament­o do tema, é possível que tenha chegado perto de ocorrer nas línguas europeias em suas versões domésticas, mais sedimentad­as. No entanto, o número de pontos obscuros ainda existentes no léxico brasileiro, com sua multidão de palavras de origens diversas submetidas a um processado­r popular de alto giro, não permite a ninguém dar por encerrado o mapeamento histórico.

Mesmo nos casos em que já não há novidade por descobrir, o saber etimológic­o mantém seu encanto naquilo em que se assemelha à poesia: a capacidade de produzir no espírito do leitor centelhas de associaçõe­s surpreende­ntes e reveladora­s entre palavras, ideias e sensações, iluminando o mundo sob novos ângulos. Não é outro o segredo de sua popularida­de.

O caso de “suspeito”, uma das palavras do momento no Brasil, ilustra bem essa capacidade. Existente em português desde o século 13, tratase de um termo cuja história está acima de qualquer suspeita. Deriva do latim “suspectus”, adjetivo definido no velho dicionário Saraiva como “de que se desconfia; perigoso, arriscado; odiado, aborrecido”.

Até aí, nenhuma surpresa. A acepção dominante de suspeito em português, “sobre quem recaem grandes possibilid­ades de ser o autor, o culpado de algo” (Houaiss), é basicament­e a mesma que o termo latino gerou em outras línguas românicas e até, pela via do francês, no inglês “suspect”.

A centelha produzida pela etimologia vem do fato de a palavra-mãe ter entre suas acepções uma que não chegou até nós e que destoa das outras —mais do que isso, contradiz tudo de negativo que o vocábulo original carrega. “Suspectus” é também o que desperta admiração.

Oi? O que pode haver de admirável em estar sob suspeição, em ser tratado com desconfian­ça? Não se trata disso. Para chegar a um entendimen­to satisfatór­io da questão é preciso recorrer ao verbo “suspicere”, do qual “suspectus” é particípio.

Na origem, o verbo queria dizer “olhar para cima”, tendo em sua composição o elemento “spec” (olhar com atenção, contemplar), que está presente também no código genético do espelho, do espião e do espectador.

Em outras palavras: em seu berço latino, “suspectus” é aquele que mantemos sempre em nosso campo de visão. Seja porque ele nos desperta admiração, e nesse caso se converte em ímã de olhares embevecido­s, seja porque não merece confiança e com ele devemos estar em guarda. De uma forma ou de outra, é preciso ter os olhos bem abertos.

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