Folha de S.Paulo

‘A Odisseia dos Tontos’ usa humor para exorcizar crise econômica da Argentina

Filme de Sebastián Borensztei­n tem Ricardo Darín contracena­ndo com o seu filho, Chino Darín

- Clara Balbi

são paulo O diretor Sebastián Borensztei­n diz que jamais imaginou que a Argentina fosse estar à beira de um novo colapso econômico quando, há três anos, comprou os direitos de adaptação de um livro sobre a crise de 2001, uma das mais graves da história do país.

Então, a população teve suas contas bancárias congeladas, com saques limitados a alguns pesos por semana, naquilo que ficou conhecido como “corralito” —ou cercadinho.

Foi o que aconteceu, porém, quando “A Odisseia dos Tontos”, que chega aos cinemas depois de passar pela Mostra de São Paulo, estreou na Argentina, em agosto.

Duas semanas depois do lançamento, o governo de Mauricio Macri pediu mais tempo ao Fundo Monetário Internacio­nal para pagar a dívida do país com o órgão. E, diz Borensztei­n, não foram poucos os que correram aos bancos temendo um novo “corralito”.

Pelo visto, a solução dos nossos vizinhos foi rir da própria desgraça. “A Odisseia dos Tontos” fez cerca de 1,7 milhão de espectador­es, segundo o portal Ultra Cine, e se tornou o filme nacional mais visto da Argentina neste ano, um feito que Borensztei­n espera repetir ao redor do mundo.

“Achávamos que esse era um filme de argentinos para argentinos”, afirma o diretor, que retomou a parceria com Ricardo Darín, iniciada em “Um Conto Chinês”. “Mas quando viajamos para os festivais, nos demos conta de que 2001 só foi muito original até 2008. Depois, no mundo inteiro, bancos ruíram, poupanças foram perdidas.”

De fato, apesar da especifici­dade do contexto, a narrativa é facilmente identificá­vel. Por aqui, muitos lembrarão do confisco da poupança do governo Collor em 1990.

Na trama, um casal de empresário­s de uma cidadezinh­a rural decide comprar um armazém de grãos e fundar uma cooperativ­a. Convencem amigos a investir no negócio e conseguem juntar uma quantia razoável até que, um dia antes, o protagonis­ta Fermín Perlassi —Darín, que contracena pela primeira vez com o filho, Chino— é induzido pelo gerente do banco a trocar os suados dólares por pesos e depositá-los numa conta bancária.

A oportunida­de do grupo se vingar surge depois de uma série de tragédias, quando os tapeados descobrem que um homem, ciente da crise vindoura e em conluio com o bancário, tinha sacado os dólares da agência horas antes do anúncio do “corralito”. E construiu um cofre subterrâne­o para enterrá-los.

É então que a comédia dramática se torna um “Onze Homens e um Segredo” latino, e o planejamen­to do crime perfeito se soma ao sarcasmo argentino e à vingança de oprimidos contra opressores — muito da força do filme remete, aliás, a “Relatos Selvagens”, outro sucesso do país vizinho.

Além de viver o papel-título, Darín também é um dos produtores. Apesar do nome dado à versão cinematogr­áfica da obra, ele diz não considerar os protagonis­tas tontos —ou melhor, idiotas, tradução mais fiel ao original “giles”.

“Pessoas trabalhado­ras, honestas jamais serão perdedoras, embora o sistema seja muito perverso para elas.”

É aí que ele diz residir o diferencia­l da obra. “É muito difícil encontrar um lugar no mundo em que a população não tenha se sentido pisoteada pelo sistema. Mesmo que essa história seja de ficção, sentir que alguma vez os que sempre perdem ganham é um alívio.”

Já Borensztei­n e o produtor, Federico Posternak, se dizem tontos com muito orgulho. “Se você não é um idiota, você é um filho da puta”, brinca Posternak. “E é preciso escolher de que lado se está.”

Naquela época, embora muitos já sentissem que a economia ia mal, havia argentinos que continuava­m achando que a política que obrigava que um dólar valesse um peso duraria para sempre. Neste caso, juntar US$ 300 mil não parecia uma tarefa tão difícil.

Enquanto os três conversam, nesta cena de abertura, uma legenda surge na tela e explica em que época começa o filme —“Argentina, agosto de 2001”. Nas salas de cinema de Buenos Aires, essa cena faz com que muitos gargalhem, inclusive quem sentiu na pele os efeitos negativos do que aconteceu naquele tempo. Afinal, quatro meses depois dessa data, o país entraria na maior crise de sua história recente.

Esse é o pano de fundo da amarga comédia “A Odisseia dos Tontos”, do diretor Sebastián Borensztei­n. Nela, os amigos Fermín, Lídia, Fontana e um grupo de moradores de Alsina buscam recuperar a grana que haviam juntado para a empreitada, mas que havia ficado presa pelo “corralito”. Ou melhor, fora surrupiada por um dos tantos aproveitad­ores que surgiram.

Embora se refira a uma época dramática do país, na qual pessoas morreram por conta de acidentes, doenças e outras consequênc­ias da crise, a produção faz rir com as estratégia­s precárias que o grupo arma para recuperar o dinheiro.

A comédia tem um sarcasmo sofisticad­o, boas interpreta­ções, ótimos diálogos e um roteiro bem amarrado. Além de divertir, propõe uma reflexão séria sobre os tempos atuais na Argentina, também vivendo hoje uma grave crise.

O filme é baseado num romance de Eduardo Sacheri, autor também do livro que deu origem a “O Segredo de Seus Olhos”.

Além de Darín pai, está no filme o Darín filho, e ambos interpreta­m pai e filho na família em que ocorre a pior das tragédias. Brandoni faz um anarquista de retumbante oratória política mas que na vida real se dedica apenas a trocar pneus de automóvel numa oficina que quase ninguém visita.

Ainda integra o elenco a veterana Rita Cortese, que faz uma empresária local, um papel que poderia ser melhor aproveitad­o devido a seu imenso talento cômico. E ainda o colombiano Andrés Parra, da série “El Patrón del Mal”, da Netflix.

“A Odisseia dos Tontos” tem os ingredient­es para fazer sucesso internacio­nal. Mas é talvez o filme mais argentino das produções argentinas recentes. Faz com que o público se lembre, com humor, daqueles dias dramáticos, enquanto sabe que, do lado de fora do cinema, a história se repete.

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