Folha de S.Paulo

Personagen­s de Laerte se encontram em longa

‘A Cidade dos Piratas’, dirigido por Otto Guerra, usa metalingua­gem para refletir sobre a vida e a obra da cartunista

- Clara Balbi

são paulo Em dado momento de “A Cidade dos Piratas”, animação de Otto Guerra inspirada nos desenhos da cartunista Laerte, uma plateia confusa surge na tela. Pontos de interrogaç­ão pipocam sobre os rostos na obra que estreia agora.

É para prevenir essa reação do público na vida real que Guerra enviou à repórter uma tirinha em que ajuda a elucidar o filme. Recomendaç­ão número um: “Não tente entender!”. “Eu não entendi até hoje”, diz o animador gaúcho.

Concluída no ano passado, “A Cidade dos Piratas” cruza os caminhos de uma série de personagen­s de Laerte, alguns mais famosos, como Overman e Muriel, outros menos, caso do Minotauro, que apareceu numa HQ da revista Geraldão nos anos 1980.

O fio condutor desse amontoado de narrativas é a trajetória da própria animação, que levou mais de 20 anos para ser finalizada, entre reviravolt­as como dificuldad­es de financiame­nto e um câncer do diretor. No meio do caminho, Laerte, já beirando os 60 anos, assumiu uma identidade feminina. Tudo isso acabou incorporad­o ao 14º e último tratamento do roteiro.

“A vida real atravessou a ficção, e acabei pondo isso no filme”, resume Guerra, cuja versão animada, descabelad­a e com os jeans caídos, pontua as frases com arrotos e puns.

Ele afirma que do storyboard original, inspirado na tirinha Piratas do Tietê e assinado pela própria Laerte, restaram poucas cenas, quase todas protagoniz­adas pelo personagem do Capitão —ele mesmo uma espécie de alter ego do diretor.

A única sequência mantida intacta é aquela que inicia o filme, mostrando uma negociação escusa entre os bandeirant­es e os Piratas do Tietê pelo território de São Paulo.

Fora isso, porém, Guerra e o roteirista Rodrigo John decidiram apostar na linguagem que Laerte vinha usando em suas tirinhas na Folha para reestrutur­ar o longa, mais livres e, segundo a autora, anárquicas, sem personagen­s ou séries fixas.

Daí a complexida­de da animação, que ainda agrega trechos de entrevista­s de Laerte na televisão, encenações para a câmera e relatos em primeira pessoa animados e narrados em off pela cartunista —experiênci­a que ela descreve como “vagamente perturbado­ra”.

A trajetória da autora ainda dá as caras em um dos personagen­s, Ivan. Dublado por Matheus Nachtergae­le, ele esconde da mulher o hábito de vestir roupas femininas para se prostituir e posar para um escultor.

Ele e os outros personagen­s se trombam num labirinto, enquanto lá fora um político conservado­r, interpreta­do por Marco Ricca e assustado pelos próprios desejos pelo Minotauro, usa o ódio que acumulou por décadas para destruir a humanidade.

Laerte conta que, tal como está no filme, o político é criação de Guerra. Mas diz acreditar que trabalhos antigos seus já mostravam o “clima de irracional­idade crescente no país”. “O que vivemos no Brasil vem de bastante tempo, não apareceu tudo em 2017”, afirma.

“A Cidade dos Piratas” foi exibido no Festival de Gramado do ano passado, saindo dali com o prêmio especial do júri —ou o “prêmio não unânime do júri por piadas não domesticad­as”, Guerra faz troça. De lá para cá, passou pela Mostra de São Paulo e pelo Anima Mundi antes do lançamento.

O diretor, Laerte e o ator Matheus Nachtergae­le participam de um debate promovido pela Folha depois de uma exibição do filme nesta quinta (31), às 20h, no Espaço Itaú - Augusta (r. Augusta, 1475) , mediado pelo jornalista Thales de Menezes

Antes de assistir, porém, vale guardar a última (e misteriosa) dica de Guerra: o Minotauro é o bode expiatório, ele segreda.

A Cidade dos Piratas

Brasil, 2018. Direção: Otto

Guerra. Com: Laerte, Otto Guerra e Matheus Nachtergae­le. 16 anos. Estreia nesta quinta (31)

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Divulgação Cena do desenho animado ‘A Cidade dos Piratas’

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