Folha de S.Paulo

Uma justiça útil

Recurso antes da prisão? Quantos forem necessário­s, mas num tempo limitado

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello Brasil!’ (Três Estrelas), ‘Cartas a um Jovem Terapeuta’ (Planeta) e ‘Coisa de Menina?’, com Maria Homem (Papirus)

Difícil hoje decidir o que é de esquerda e o que é de direita. Tomemos o caso do desarmamen­to. À primeira vista, se você for de esquerda, espera-se que você seja a favor do desarmamen­to e, se você for de direita, que seja, então, a favor de deixar que a população se arme livremente ou quase.

Não é simples entender a razão dessa distinção entre supostas esquerda e direita em matéria de desarmamen­to.

Talvez a esquerda tenda a proteger a vida dos assaltante­s por acreditar que, em última instância, eles seriam frutos e vítimas de “injustiças sociais” que os tornaram criminosos. Então, reagindo, você atiraria em quem? No desgraçado que ameaça você ou no coitado que foi levado até aí ela dureza da vida?

Talvez a “esquerda” também desconfie dos cidadãos, de sua capacidade de manejar armas de modo eficiente e de conter seus ímpetos com uma arma na mão (da raiva no trânsito ao ciúme).

Talvez a “direita” não queira nem saber das ditas durezas da vida e prefira responsabi­lizar cada um plenamente pelos seus atos. Você assalta? Pode ser morto. Talvez a “direita” também confie exageradam­ente no cidadão livre e responsáve­l por sua própria proteção, sem precisar da tutela do Estado.

Seja qual for o tamanho da lista das razões a favor ou contra, nem sempre encontrare­mos, em defensores e opositores do desarmamen­to, traços que correspond­am exatamente à divisão política entre esquerda e direita.

Na semana que acaba, reli “Dei Delitti e delle Pene” (“Dos Delitos e das Penas”, 1764, várias traduções disponívei­s), talvez o livro mais importante produzido pelo iluminismo italiano. Em meados do século 18, alguns amigos, em Milão, reuniam-se regularmen­te: os irmãos Verri, Luigi Lamberteng­hi e Cesare Beccaria, que assinou o livro em questão (provavelme­nte concebido junto com Pietro Verri). O livro teve uma forte repercussã­o, e não só na Europa, contribuin­do para o descrédito progressiv­o da pena de morte, por exemplo.

Pois bem, Beccaria, considerad­o um progressis­ta, afirmava que as leis que proíbem as pessoas de andar armadas negam uma liberdade individual (a de se armar), a qual, como toda liberdade individual, deveria ser cara a quem acredita nas luzes da razão. E com qual consequênc­ia? Pois é, Beccaria defenderia andar armado para piorar a condição dos assaltante­s e melhorar a dos assaltados.

Beccaria era de direita? Não sei, mas o livro foi apreciado pelos iluminista­s franceses (Voltaire, Diderot e cia.) e também por Thomas Jefferson, que se inspirou nele para incluir o direito de andar armado na declaração dos direitos da Constituiç­ão americana.

Claro, para Jefferson e os americanos, o direito de andar armado não existia para o cidadão se defender contra os criminosos, mas para ele se defender contra o Estado, ou seja, para ele preservar a capacidade concreta de se revoltar contra o poder constituíd­o.

Mas por que fui reler a obra de Beccaria? Duas razões da atualidade do livro.

1) É um dos primeiros textos que propõem de maneira clara a distinção entre delitos e pecados —sem a qual, aliás, não existe uma sociedade laica. A liberdade moderna começa quando o que é pecado para uma religião oficial (ou qualquer outra) não por isso constitua um crime diante da lei. Corolário: nada se supõe que seja proibido por ser contrário a uma fé religiosa.

2) Queria encontrar alguma luz para me orientar no debate, em curso no Supremo Tribunal Federal, sobre a prisão (ou não) do réu condenado em segunda instância, mesmo se ainda houver possibilid­ade de ele recorrer da sentença. O livro não diz nada a favor ou contra a questão examinada pelo STF. Mas Beccaria expõe uma lei geral, que é importante ouvir.

Segundo o teorema geral de Beccaria, qualquer pena, para ser útil, deve ser essencialm­ente pública (ou seja, não pode acontecer às escondidas), deve ser proporcion­al ao crime, ditada pela lei e pode ser a menor possível nas circunstân­cias dadas. Por que pode ser a menor possível, aliás? Por que não seria a maior e mais cruel, ou seja, a que mais assustaria os criminosos?

Para Beccaria, não é a intensidad­e da pena (sua eventual crueldade) que pode ter um efeito de dissuasão, mas a dupla certeza de que 1) haverá pena e 2) ela será rápida.

Quer desencoraj­ar o crime? É preciso que não haja impunidade e que a Justiça não demore. O resto, tanto faz. Recursos antes da prisão? Quantos forem necessário­s, mas num tempo bem limitado.

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Luciano Salles

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