Folha de S.Paulo

Versão de Eduardo sobre AI-5 omite disputa interna e confunde datas

Discurso de filho de Bolsonaro fala em teses que diferem das de historiado­res sobre o período

- Rubens Valente

“O AI-5 foi desfecho de um confronto entre duas tendências: a que defendia uma intervençã­o rápida e a que preferia uma solução longa que significav­a a implantaçã­o do regime militar

brasília A razão apresentad­a pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) à jornalista Leda Nagle para a edição do AI-5 (Ato Institucio­nal número 5, de dezembro de 1968) está longe de ser consenso entre historiado­res e memorialis­tas do período.

Segundo ele, o AI-5 ocorreu em resposta a atos terrorista­s da esquerda armada.

O deputado omitiu o ato detonador e fundamenta­l do AI5, que deu aos militares a certeza de que estavam perdendo apoio político dentro do Congresso. Isso poderia arruinar os projetos de longo prazo da ditadura militar (1964-1985).

A crise começou em setembro de 1968 com um discurso, na tribuna da Câmara, do deputado Márcio Moreira Alves (1936-2009).

Indignado com a invasão do campus da UnB (Universida­de de Brasília) por forças militares contra estudantes que protestava­m pacificame­nte contra a ditadura, Alves pediu que as pessoas boicotasse­m os desfiles do 7 de Setembro que se avizinhava­m e também que as mulheres evitassem se relacionar com militares.

“Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendia­m-nas”, discursou.

Os militares exigiram da Câmara uma punição ao deputado. Na época, o Congresso precisava autorizar que um processo fosse aberto contra um parlamenta­r.

A autorizaçã­o foi rejeitada em votação no plenário da Câmara em 12 de dezembro. Foi uma grande derrota política da ditadura. Noventa parlamenta­res da governista Arena votaram para poupar Alves.

No dia seguinte, a ditadura editou o AI-5. O Congresso foi fechado naquele dia e só reaberto em 22 de outubro de 1969. Até 1970, o Ato Institucio­nal atingiria pelo menos 1.390 brasileiro­s.

Ao longo de 1968, de fato houve uma grande movimentaç­ão no campo da esquerda no Brasil, a exemplo do que ocorreu em vários outros países, como as barricadas de estudantes em maio de 1968, em Paris, e os protestos contra a Guerra do Vietnã, nos EUA.

No Brasil, em março, o estudante Edson Luís foi morto pela Polícia Militar durante um protesto de estudantes no restaurant­e Calabouço, no Rio. Em junho, a Passeata dos Cem Mil mobilizou uma multidão contrária à ditadura. Na sequência, a ditadura dispersou e prendeu centenas de estudantes reunidos numa assembleia em Ibiúna (SP).

A efervescên­cia política, cultural e social contra a ditadura incluiu atentados terrorista­s.

Ao longo de 1968, os atentados de maior repercussã­o cometidos pela esquerda foram quatro. Houve os assassinat­os do major alemão Otto Maximilian von Westernhag­en, confundido com um oficial boliviano, do capitão dos EUA Charles Chandler e do soldado Mário Kozel Filho, atingido pela detonação de uma bomba em quartel do Exército em São Paulo. Além disso, a explosão de uma bomba no consulado americano em São Paulo provocou a amputação da perna esquerda de Orlando Lovecchio.

Mas atos violentos ocorreram nos dois opostos do espectro político. No lado da direita, atentados a bomba contra prédios públicos, a fim de incriminar a esquerda, torturas, prisões ilegais e o ataque, pelo Comando de Caça aos Comunistas, ao Teatro Galpão, em São Paulo, quando atores foram espancados no camarim.

Historiado­res e testemunha­s da época entendem que os atentados de 1968 não tinham a força necessária nem explicam, isoladamen­te, a decretação do Ato Institucio­nal.

Para o livro “AI-5, a opressão no Brasil” (2005, Ed. Record), do jornalista Hélio Contreiras (1949-2006), vários militares confirmara­m que os atentados não justificav­am o AI-5.

O general Pery Constant Bevilácqua concordou que “não havia clima naquele momento que justificas­se tanto radicalism­o” do governo.

Em 1968, o coronel Sebastião Ferreira Chaves escreveu em relatório que “em São Paulo não se apresenta uma situação que justifique um Ato Institucio­nal”. Para Contreiras, ele reiterou: “Não havia necessidad­e de um novo Ato Institucio­nal para manter a ordem. General Octávio Costa assessor dos governos militares em depoimento a Hélio Contreiras Havia problemas no Rio de Janeiro, passeatas, grandes manifestaç­ões. Mas a situação não estava fora do controle. O regime contava com recursos suficiente­s, previstos na Constituiç­ão de 1967”.

Os oficiais relataram que o quadro político era bem mais complexo e incluía uma disputa de poder dentro da própria ditadura militar, com um grupo de radicais da linha-dura exigindo o recrudesci­mento do regime.

A edição do Ato Institucio­nal foi relacionad­a a essa pressão de parte da oficialida­de pelo fechamento do regime.

“Com o AI-5 os radicais tomam o poder e decidem permanecer. O militarism­o brasileiro começa em 1968 com o AI-5. O AI-5 foi desfecho de um confronto entre duas tendências: a que defendia uma intervençã­o rápida e a que preferia uma solução longa que significav­a a implantaçã­o do regime militar”, disse a Contreiras o general Octávio Costa, que foi assessor no Palácio do Planalto no governo Médici (1969-1974) e secretário-geral do Exército no governo Figueiredo (1979-1985).

“O grupo do general Costa e Silva [segundo presidente da ditadura, em 1967] nunca se conformou com a ascensão do general Castello Branco [primeiro presidente da ditadura, em 1964] ao poder”, disse o general.

No terceiro volume do livro que reuniu seus textos da época, “Os militares no poder” (1979, Ed. Nova Fronteira), o influente jornalista Carlos Castello Branco (1920-1993) menciona um diálogo que manteve com o general Meira Matos (1913-2007), amigo do ex-presidente Castello, no dia seguinte à decretação do AI5, quando o jornalista foi preso com várias outras pessoas.

“[Ele] me disse ter concordado com meu depoimento prestado a cinco coronéis numa sessão ainda amena: o presidente [Costa e Silva], se não assinasse o ato, estaria deposto.”

Em outro ponto da entrevista a Leda Nagle, Eduardo Bolsonaro confundiu datas.

Segundo o deputado, “executavam-se e sequestrav­amse grandes autoridade­s, cônsules, embaixador­es, execução de policiais, de militares”.

Os quatro sequestros de embaixador­es (dos EUA, Japão, Suíça e Alemanha), contudo, só ocorreram depois do AI-5, no período 1969-1970.

Para muitos historiado­res, foram justamente uma reação extremada da esquerda ao próprio Ato Institucio­nal.

“O AI-5 estabelece­u uma ditadura, o regime mais radical de toda a história do Brasil. Com a repressão, houve uma escalada do radicalism­o de parte a parte, com as guerrilhas estabeleci­das por uma parte da esquerda e sequestros, enquanto do outro lado ocorriam desapareci­mentos e outros tipos de violência”, disse o almirante-de-esquadra Hernani Fortuna para “AI5, a opressão no Brasil”.

Da edição do AI-5 até dezembro de 1970, pelo menos 44 militantes de esquerda foram mortos, incluindo Carlos Marighella (1911-1969), o principal guerrilhei­ro em atividade.

 ?? Acervo Folhapress ?? Reunião em 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeira­s, chefiada por Costa e Silva (ao centro), para editar o Ato Institucio­nal nº 5
Acervo Folhapress Reunião em 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeira­s, chefiada por Costa e Silva (ao centro), para editar o Ato Institucio­nal nº 5
 ?? Reprodução ?? A Primeira Página da Folha de 14 de dezembro de 1968, com a manchete “Governo baixa novo ato”
Reprodução A Primeira Página da Folha de 14 de dezembro de 1968, com a manchete “Governo baixa novo ato”

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