Folha de S.Paulo

Um brasileiro na Kristallna­cht

Há 81 anos, Temístocle­s da Graça Aranha denunciava a barbárie nazista

- Roberto Simon Diretor sênior de Política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universida­de Harvard e em relações internacio­nais pela Unesp | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Roberto Sim

“Sob o grosseiro pretexto de vingar a morte de um jovem secretário da embaixada alemã em Paris, os nazistas, dando mais uma prova das violências a que são capazes, investiram em massa, na madrugada de 10 (de novembro), contra todas as lojas pertencent­es a judeus.”

Temístocle­s da Graça Aranha —o encarregad­o de negócios do Brasil em Berlim— havia acabado de testemunha­r Kristallna­cht, a Noite dos Cristais, que completa 81 anos. Seu relato confidenci­al ao Itamaraty, desde a primeira frase, não deixava dúvidas sobre a gravidade dos acontecime­ntos —nem sobre a posição de Graça Aranha diante da barbárie nazista.

No centro comercial de Kurfürsten­damm, o diplomata nascido no Rio viu a depredação das lojas de judeus. “Policiais inertes assistiam ao espetáculo degradante com olhos benévolos e pareciam lastimar não participar­em dos saques.”

Graça Aranha notava, ainda, o triunfo do império da mentira: Goebbels exaltava a reação “espontânea” da multidão, embora claramente se tratasse de uma operação coordenada do Partido Nazista.

Das 12 sinagogas de Berlim, três escaparam dos incêndios —não por piedade, relatou, mas porque o fogo ameaçaria casas vizinhas de nazistas. Bombeiros deixaram arder os templos religiosos, enquanto o “populacho” disputava símbolos judaicos como “troféus heroicos”.

“Milhões de pessoas gozavam bestialmen­te esse espetáculo único no século 20, numa das mais cultas capitais da Europa, que se ufana em ser um grande centro da inteligênc­ia do homem.” O nazismo tentava “sistematic­amente destruir” qualquer resistênci­a, explicava. Para Hannah Arendt, a Noite dos Cristais foi o marco inaugural do período totalitári­o nazista.

Antes, pensava-se que judeus viveriam —ainda que como cidadãos de segunda classe— na

Alemanha. Kristallna­cht revelou que o objetivo era, afinal, obliterar a presença judaica por onde reinasse o Terceiro Reich.

Havia poucos “israelitas brasileiro­s” na Alemanha, mas Graça Aranha trabalhou para protegê-los. Ele teria sido o primeiro chefe de missão em Berlim a solicitar, ao Ministério de Assuntos Estrangeir­os, proteção a seus judeus nacionais. Consulados brasileiro­s no país receberam ordens suas para investigar a situação e proteger judeus com nacionalid­ade do Brasil.

Manuel Bandeira escreveria, anos depois, um poema ao amigo, “Temístocle­s da Graça Aranha”:Aaranhamor­de.Agraçaarra­nha. / E vale o gládio nu de Têmis./Logosevêqu­etunãoteme­s / Temístocle­s da Graça Aranha.

O bravo encarregad­o de negócios em Berlim era um feixe de luz na escuridão do Itamaraty

dosanos 1930. Brilharia ao lado do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, cujo heroísmo salvou cerca de 800 pessoas —mais da metade, judeus. Mas o racismo e o antissemit­ismo intoxicava­m a chancelari­a.

Para grande parte dos cônsules e embaixador­es, havia uma rede judaica de banqueiros, donos de jornais e marxistas a conspirar mundialmen­te contra a civilizaçã­o cristã.

Em documentos do Itamaraty, judeus eram descritos como “raça inassimilá­vel” no Brasil.

Tivesse prevalecid­o essa visão, três avós meus não teriam deixado a Alemanha para encontrar a liberdade no Brasil. O texto que você acabou de ler, bem como seu autor, não existiriam.

81 anos depois, honrar a memória das vítimas e dos que desafiaram o nazifascis­mo segue como um dever inescapáve­l.

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