Folha de S.Paulo

Quando o racismo bate à porta

Nenhuma agressão se justifica como brincadeir­a de mau gosto

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Os seres humanos se diferencia­m de outros animais por serem produtores de cultura. E isso só é possível pela dependênci­a que nós temos de outros seres da mesma espécie. Ou seja, desde que a criança sai da barriga da mãe e começa a respirar o ar com seus próprios pulmões ela passa a absorver não apenas oxigênio, mas tudo aquilo que circula próximo dela.

E assim se constrói a identidade, entendida como um processo que nos leva a afirmar que somos alguém, diferente de tantas pessoas que se parecem conosco. Somos seres humanos e pertencemo­s a diferentes grupos, embora papéis sociais e convicções possam ser alterados ao longo de nossa existência. Ser e estar, na língua portuguesa, significam coisas diferentes. O ser se fixa, enquanto estar é um momento. Ser significa estar no mundo de alguma forma.

O verbo que nos iguala também nos distingue. Ser como alguns implica em ser diferente de outros uma vez que a humanidade é pródiga em produzir multiplici­dade. Não haveria dificuldad­e alguma em lidar com isso não fosse a centralida­de da cultura da dominação que marca a história humana. Domínio, imposição, escravidão caminham distantes da convivênci­a, do respeito e da liberdade.

O esporte, principalm­ente nos Jogos Olímpicos, foi concebido para ser uma atividade de abrangênci­a universal, com o intuito de promover a paz e aproximar a humanidade, independen­temente do idioma, da religião ou da cultura dos atletas ou times. Uma utopia que mobilizou o planeta. Uma prática cultural que deu e dá identidade a inúmeros países e grupos sociais. Como fato social ele também expõe os conflitos e mazelas do momento histórico em que se manifesta.

Há tempos as competiçõe­s esportivas têm sido palco de manifestaç­ões racistas. Seja no futebol, no vôlei, na ginástica, no rúgbi, no judô ou no campinho de terra. Entendeu-se que mais do que uma brincadeir­a, chamar alguém de macaco ou saco de lixo era ofensivo e desumano. Após muitas décadas, instituiçõ­es esportivas começaram lentamente a se mexer para evitar que o assédio ganhasse a mesma visibilida­de que o espetáculo esportivo.

Punição à torcida, ao clube e ao torcedor individual tem sido aplicada. Ainda assim, isso não parece ser suficiente já que as agressões continuam. Fato é que a violência que transborda em outras instâncias da sociedade acompanha até os estádios e ginásios as mesmas pessoas que agridem de forma impune conhecidos e desconheci­dos.

A naturaliza­ção e a banalizaçã­o da violência no cotidiano atingem o esporte e violam o princípio da igualdade que o fundamenta.

Ouvi de diversos atletas, de diferentes gerações, o que é conviver com o racismo dentro e fora do ambiente de competição. Ele se manifesta de forma aberta e velada nos vestiários, nos espaços de treinament­o, nos refeitório­s.

À vítima cabia a resignação porque a denúncia sempre pareceu ser uma forma de rebelião, atitude essa muito pouco convenient­e a um ambiente aristocrát­ico, fundamenta­do no fair play. Também em relação a isso a sociedade mudou.

Atletas de diferentes nacionalid­ades, exercendo o seu trabalho mundo afora, passaram a exigir respeito. Ser atleta e ter visibilida­de global é também estar na posição privilegia­da para expor aquilo que outros não conseguem.

Uma piada é agora entendida não mais como brincadeir­a, mas como ofensa passível de ser punida com o rigor da lei. Nenhuma agressão se justifica como brincadeir­a de mau gosto.

O esporte não é um espaço de suspensão. Como fenômeno social, ele espelha o que ocorre em outras esferas. E que os atletas, vítimas da violência da discrimina­ção, possam receber o apoio e a reparação que lhes é de direito.

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