Folha de S.Paulo

Após títulos na F-1, Hamilton passou a defender em público a igualdade racial

Avesso ao ativismo no início da carreira, hexacampeã­o levanta bandeiras de direitos humanos

- Carlos Petrocilo e Luciano Trindade

são paulo O hexacampeã­o de F-1, Lewis Hamilton, 34, tem uma série de tatuagens pelo corpo. Na primeira delas, feita em 2015, está escrito “Still I rise” (“Ainda me levanto”, em português), título de um poema de Maya Angelou (19282014), escritora negra e ativista em prol dos direitos humanos.

“Trazendo os dons dos meus antepassad­os eu sou o sonho e as esperanças dos escravos. Eu me levanto”, diz o poema.

Carregara expressão tatuada em suas costas foi uma das primeiras atitudes públicas do piloto inglês em defesa da igualdade racial.

Em quase 13 anos na principal categoria do automobili­smo, Hamilton levou ametade destetem pop ara começara falar abertament­e sob reas questões que o preocupam, como racismo emeio-ambiente.

A mudança de postura ocorreu depois de uma troca de equipe, quando deixou a McLaren, em 2012, rumo à Mercedes. Na primeira escuderia da sua carreira, ele vivia tutelado pelo diretor Ron Dennis, considerad­o um gestor linha dura eque controla as ações de seus pilotos dentro eforadas pistas na F -1.

Na Mercedes, o atual hexacampeã­o passou ater maior liberdade para se expressar e assumir um perfil ativista, algo que ficou mais evidente na temporada de 2019, vencida por ele. Neste domingo (17), ele disputa o GP Brasil, às 14h10, em São Paulo.

Quando tinha 14 anos, o inglês disse acreditar que a ausência de pilotos negros na F-1 era uma questão de tradição. “Os negros não se interessam por automobili­smo”, disse, numa contradiçã­o ao gosto que o próprio piloto tinha desde a sua própria infância.

Ao chegar à elite do automobili­smo, em 2007, já com 21, ele se esquivava das perguntas sobre o fato de ser o primeiro negro na categoria.

“Quando estou em uma corrida, não penso ‘oh, sou o único negro aqui’”, disse naquele ano, segundo a biografia nãoautoriz­ada “Lewis Hamilton – Cinco vezes campeão do mundo”, de 2018, escrita pelo jornalista inglês Frank Worral.

O autor conta que Hamilton conviveu com o fato de ser o único piloto negro em um grid desde o kart. “Como algumas crianças eram imaturas, a estranha coisadorac­ismo surgia. Mas eu canalizei as agressões. Fui ensinado que a melhor maneira de vencê-los é na pista”, disse o piloto, em trecho do livro.

Para o chefe da equipe Mercedes, Toto Wolf, o britânico ainda carrega as marcas do preconceit­o que sofreu. “Se isso [racismo] acontece com uma criança de oito, nove, dez anos, deixa cicatrizes que não desaparece­m”, afirmou o dirigente em outubro deste ano.

Nascido em Stevenage, ao norte de Londres, Hamilton viveu em moradias populares na infância. Já na F-1, foi alvo de injúrias raciais em 2008, durante os testes para a temporada na Catalunha. Fãs do espanhol Fernado Alonso se pintaram de preto e vestiram camisetas com a frase “familiares de Hamilton” escrita.

“Me sinto triste”, disse o britânico, que evitou falar mais sobre o caso na época.

De acordo com jornalista­s ingleses que acompanham a carreira do hexacampeã­o mundial, ele começou a expressar suas opiniões depois de ter conquistad­o a confiança no meio da Fórmula 1.

Nesta semana, por exemplo, o britânico destacou a importânci­a de debater o preconceit­o racial. “Na escola só aprendi a ‘história branca’. Nunca me contaram nada sobre minha cultura. Meus pais me contaram sobre minha história, porque eles queriam falar sobre a cultura deles”, disse o piloto ao site Motorsport­s.

Presidente do Geledés (instituto focado na mulher negra), Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, compara a postura de Hamilton com a cantora norte-americana Beyonce.

“Em alguns meios, como o esporte, o artístico, as pessoas que levantam bandeiras acabam sendo malvista. Nos Estados Unidos, a Beyonce passou a falar sobre racismo depois que ela se tornou um ícone”, explica Oliveira.

Para ela, os “negros em lugar de destaque” precisam se posicionar. “Para você combater qualquer mal, é preciso nominá-lo”, disse Oliveira, que também é ex-vice-presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, da OAB-SP.

Nos EUA, há um histórico maior de atletas engajados em causas sociais. O último caso de maior repercussã­o foi o do jogador de futebol americano Colin Kaepernick. Então no San Francisco 49ers, em 2016, o quarterbac­k se recusou a ficar de pé durante a execução do hino nacional dos Estados Unidos em protesto contra as ações de policiais que usavam força excessiva em operações contra suspeitos negros.

“Não vou me levantar e mostrar orgulho por um país que oprime o povo negro”, afirmou Kaepernick.

O atleta foi repreendid­o pelo presidente dos EUA, Donald Trump, que chegou a pedir à NFL a demissão de jogadores que repetissem o ato em partidas da liga.

A empresa de material esportivo Nike, no entanto, comprou a causa de Kaepernick e o convidou para ser o rosto de sua campanha em comemoraçã­o aos 30 anos do slogan da marca “Just Do It.”

“O engajament­o dos atletas americanos é uma questão de educação escolar. Os esportista­s de elite dos Estados Unidos são formados nas universida­des. Então, ele tem uma bagagem com disciplina­s como sociologia, filosofia, nas quais ele aprende sobre as questões sociais”, afirma Selma Felerico, doutora em comunicaçã­o e semiótica pela PUC-SP.

Segundo a especialis­ta, as grifes nos EUA também estão mais envolvidas com questões sociais do que, por exemplo, as empresas inglesas.

“As marcas [americanas] estão atentas as questões que estão sendo discutidas na sociedade, como o feminismo, por exemplo, e elas vão passar a retratar isso. Na Inglaterra, esse envolvimen­to é bem menor”, completa.

A versão engajada de Hamilton é vista com desconfian­ça por parte dos fãs de F-1 no seu país, onde ele é acusado”até de ter sotaque americano.

O tema foi questionad­o pela mídia britânica. Um jornalista perguntou como o piloto se sentia ao ler e ouvir comentário­s de que ele se distanciav­a do seu país ao falar com sotaque dos EUA e morar em Mônaco.

“É uma loucura, porque me lembro de ter crescido e assistido a Jenson Button [piloto inglês e branco] e todos os jovens que chegavam [na F-1] e migravam para Mônaco”, disse Hamilton. “Ninguém nunca disse nada”, completou.

Foi a senha para Rio Ferdinand, ex-capitão da seleção inglesa defender o piloto. “Não podemos ignorar o nível de desrespeit­o e tom racista de quem questiona o patriotism­o de Hamilton”, afirmou.

O piloto disse não haver ninguém que tenha levantado tanto a “bandeira britânica com orgulho” como ele.

Também levantou a hipótese de que teria maior reconhecim­ento em seu país se a cor da sua pele fosse outra. “Talvez as coisas fossem diferentes se eu fosse branco.”

Acho que [a ausência de negros] é uma questão de tradição. Os negros se interessam pouco pelo automobili­smo, preferem outros esportes

Hamilton, aos 14 anos, em 1999

Como algumas crianças eram imaturas, a estranha coisa do racismo surgia. Mas eu canalizei as agressões. Fui ensinado que a melhor maneira de vencê-los é na pista

Em 2007, seu primeiro ano na F-1

Quando estou em uma corrida, não penso ‘oh, sou o único negro aqui’

Frase publicada no livro “Lewis Hamilton – C inco vezes campeão do mundo”

O Mandela é o grande ídolo para mim. Ele foi um homem incrível. Eu li os livros dele e tive a sorte de encontrá-lo uma vez

Hamilton em 2019

Eu não sei porque não temos mais mecânicos ou engenheiro­s, ou até mesmo pessoas da imprensa abordando a diversidad­e

Hamilton em 2019

Talvez as coisas fossem diferentes [em termos de valorizaçã­o na Inglaterra] se eu fosse branco,

Hamilton em 2019

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Dylan Martinez - 7.jul.2007/Reuters e Marcelo Chello - 14.nov.2019/Agência O Globo Hamilton no início, na Mc Laren, e antes do GP Brasil, na Mercedes
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