Folha de S.Paulo

Macarthism­o escolar

Damares e Weintraub ameaçam liberdade de ensino com corte de verbas a redes públicas

- Editoriais@grupofolha.com.br

Acerca de ameaça de corte de verbas a redes públicas.

O Estado é laico, mas... Numa democracia plena e numa nação republican­a, não caberiam reticência­s nem subordinaç­ão nesse axioma. O Estado é laico. Ponto.

Não para Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que agora se associa ao não menos controvers­o titular da pasta da Educação, Abraham Weintraub, para criar uma atmosfera policiales­ca em todas as salas de aula do país.

“O Estado é laico, mas eu sou terrivelme­nte cristã”, repetiu Damares na quarta-feira (20), ao anunciar com Weintraub mais um passo na cruzada contra a liberdade de cátedra. Ambos negam que a central de denúncias de sua ideação, inspirada no movimento Escola sem Partido, tenha por alvo constrange­r educadores.

Sempre haverá casos, aqui e ali, de professore­s a abusar da autoridade de que são revestidos para doutrinar crianças e jovens. Não há dados confiáveis, entretanto, sobre a real incidência desses desvios, ainda que a dupla ministeria­l se contente com vídeos e denúncias a viralizar nas redes sociais.

Sim, alunos e pais têm direito a ver respeitada­s suas convicções religiosas em sala de aula. O princípio não lhes dá autoridade, contudo, para exigir que o professor ensine explicaçõe­s criacionis­tas sobre a origem da vida e da espécie humana em pé de igualdade com a teoria da evolução por seleção natural, consagrada pela ciência.

Equiparar ambas as explanaçõe­s implicaria desrespeit­ar estudantes. Eles também têm direito a uma formação intelectua­l que os habilite a atuar em esferas sociais mais amplas que as de igrejas e seitas.

Esse é apenas um exemplo das distorções que fatalmente ocorrerão caso vingue o tal canal de delação. Weintraub e Damares usam bullying, automutila­ção e abusos sexuais como álibi, mas parece mais provável que ele sirva de recurso para proscrever temas como violência policial, feminismo, homofobia ou educação sexual.

Eventuais atritos e conflitos que surjam na escola com a necessária abordagem pedagógica de assuntos polêmicos na sociedade devem ser debatidos ali mesmo, no estabeleci­mento. Com a participaç­ão dos próprios alunos e, até, da comunidade de pais, mas não para calar e reprimir mestres e diretores.

A vocação autoritári­a de Damares e Weintraub fica mais evidente na proposta de desconside­rar autoridade­s educaciona­is de estados e municípios ameaçando-as com cortes de verbas federais caso não intervenha­m nos colégios denunciado­s para impor o que, do Planalto, se enxerga como linha justa.

Valores particular­es ou religiosos não têm cabimento no ensino público, muito menos para policiá-lo.

O Estado é laico. Ponto.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil