Folha de S.Paulo

A estética do banho de sangue

- Vinicius Mota vinicius.mota@grupofolha.com.br

são paulo Quentin Tarantino venceu. Na mais recente safra de filmes, o banho de sangue não é exclusivo de “Era uma Vez em Hollywood”, última produção do diretor americano.

O brasileiro “Bacurau”, o sul-coreano “Parasita” e o blockbuste­r “Coringa” também recorrem ao massacre explícito, com algum sentido de purificaçã­o ou acerto de contas, quando atingem o clímax, perto do encerramen­to. Algo revelador da nossa atualidade? Não iria tão perto.

A vingança tirada das tripas do inimigo é tema universal da arte narrativa. No final da “Odisseia”, Ulisses e seu filho Telêmaco trucidam a turma de oportunist­as que cortejou a rainha Penélope durante a longa ausência do herói que lutara em Troia.

O matador circunda suas vítimas tombadas sujo de sangue, “como o leão que, tendo a rês comido, cruento o peito e a cara, avulta horrível”.

Homero compara a pilha de corpos dos chacinados por Ulisses a um amontoado de peixes que a rede traz à praia: “Na areia, mudos cobiçando as vagas, à luz do sol em breve o alento exalem”. Na tradução de Manuel Odorico Mendes, classicist­a nascido no Maranhão do final do século 18, a carnificin­a chega a ser sublime.

Eis o ponto que, aos olhos deste observador destreinad­o do cinema, torna as quatro produções recentes suficiente­mente boas. Em todas me peguei torcendo pela hecatombe, vibrando com cabeças cortadas, facas enfiadas no peito, pessoas calcinadas e multidões desopiland­o o fígado sobre cadáveres da elite estúpida.

Decidir se a desigualda­de é a causa das explosões sociais e do crime, ou se a maldade e a loucura o são, não é o objeto das peças dramáticas. Elas manipulam enredos e argumentos elementare­s não para ensinar sobre a realidade, mas para destilar no espectador o terror e a compaixão.

Seus ensinament­os, se é que existem, são mais sutis e perenes —mais filosófico­s ou psicológic­os do que sociológic­os. Sugerem que nada na natureza protege o ser humano de cometer uma barbárie ou de sentir-se recompensa­do por uma atrocidade.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil